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15 de dez. de 2014

Recado ao Senhor da Rua das Violetas/Resposta ao Senhor da Rua Cidade de Castro


        Deveria neste momento estar escrevendo um ensaio, mas prefiro deixa-lo pela metade, na espera. Caro senhor das Violetas, neste sábado chuvoso, com a vontade de escrever e ao mesmo tempo um gosto travoso de preguiça, uma televisão a papagaiar solitária, a janela aberta e uma cachorrinha sempre sorridente e solicita, parece um cenário de horror e solidão, mas não é, esgueirei-me pela estante para encontrar companhia aprazível e por lá encontrei um punhado de papéis impressos a tagarelar no seu silêncio de mensagem cifrada. Tem uma hora que o tempo acaba na sua infinitude, diz um filósofo alemão qualquer, ou silêncio é a gente mesmo demais, numa filosofia que vem de Cordisburgo.
       Mas nada há de encanto nestes pensamentos, muito mais é caminhar pela chuva fina pensando no ser, no sentir e no existir, mas falta-me coragem para tanto, a friagem me faz covarde em deixar o sofá, porém de induz à coragem de pensar naquele texto que ensaio o ensaio e não escrevo.
A televisão mostra um filme água com açúcar, daqueles que se acostumou a ver nas tardes modorrentas dos sábados ou domingos, durante a semana não ouso dizer, mas algo me chama a atenção, quando o personagem central declara ser uma moeda, que foi cortada de uma chapa, cunhada e chanfrada, o valor... bem este pouco importa, já que o importante é ser moeda. Fiquei com isto aqui na cabeça, que somos como moedas, feitas, marcadas e adestradas, se me permite a comparação estapafúrdia, senhor da rua das violetas, passadas de mão em mão e com valor previamente estabelecido, valor nominal, pois que valor dá-se a uma moeda, senão o recebido, além de ser considerada troco. Uma vez baleado na guerra ele diz que a moeda agora apresenta dois furos, logo perdeu o valor.
       Se por um lado isto se consuma, por outro ganhou valor histórico, mas meu caro senhor, valor histórico é mera moeda de aposentado por uma invalidez qualquer que as notas, muito mais bem vistas, de valores maiores e peso ínfimo acaba por impor à nefanda circulação. 
Quanta bobagem, dirá o senhor, e eu hei de reconhecer sua veracidade. Ora! Encomoda-lo com um discurso tão insustentável como a leveza do ser.
        Verdade é que parece que as tais personagens tiraram folga neste sábado de dezembro, nenhuma quer conversar comigo, a não ser para reclamar disto ou daquilo e ai fico eu a vagar minha indigência literária pelas linhas obscuras do papel, me esgueirando por entre pontos e vírgulas na insana tentativa de quer dizer. 
       Aliás, saber dizer é uma arte, já disse alguém em tempos idos e vividos, coisa que não chego nem perto nesta barafunda de ideias jogadas, mas uma coisa tenho a lucidez necessária para explanar, o quanto é difícil querer entender o mundo em que sobrevivemos, seja pelas pessoas em si ou seja por seus atos em "ré"; sim, não errei no duplo sentido que grafei, pois quanto mais para frente se anda, menos sinto a evolução, seremos seres no futuro como ou pior, em termos de evolução mental, que os senhores das cavernas, com a bizarra moda de um eletrônico qualquer na mão, e se me fosse, ainda, permitido imprimir uma viagem surrealista, gostaria de ver este arrogante HOMO SAPIENS SAPIENS em confronto direto com aqueles; o SAPIENS a arrulhar que chegou aos confins do universo e aquele, do alto da sua simplicidade carvérnica, olhando fundo e seguro 
em seus olhos e dizendo: "eu inventei a roda".
     O homem de tempos muito passado não teve está ideia de posteridade histórica, pois senão teria patenteado seu invento, e aí babau relativismo.
Perdoe este pobre homem de letras, pois afinal as palavras foram para serem ditas e as minhas não cabem dentro da boca. 

Um forte abraço deste,
Senhor da rua Cidade de Castro.

SÉRGIO SOUZA



     Talvez seja uma resposta tardia, que demorou para me ocorrer. É que não me aflige agora nenhum pensamento, e este é o melhor momento para se dizer alguma coisa. Já reparou naquela sensação de procura, de busca incessante por entre as profundezas de nosso interior, com o intuito de encontrar algum objeto, algo velho que nos dê uma sensação de coisa nova, ou, como diz você, meu bom senhor da rua Cidade de Castro, Donec Mei? É interessante que os maiores tesouros guardados dentro da gente estão sempre nas partes menos acessíveis, cabe-nos, portanto, revirar-nos por completo para encontrá-lo, porque temos, sem perceber, um preciosismo tão grande com nossos pertences valiosos, que acabamos por esconde-los de nós mesmos num relicário trancado que mal sabemos o endereço.
É estranho que passei hoje o dia a ver o mundo por uma janelinha estreita. Fiquei pensando em Fernando Pessoa, na verdade ele deve ter pensado em mim, porque surgiu um certo Álvaro de Campos – o senhor como homem das letras deve conhecê-lo – e me disse que precisava escrever, então pediu emprestada minha memória e teceu nela algumas lembranças. Acho que me recordo dos seus versos:

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

    Acho que sonhar já está de bom tamanho. Que importa ser, se não houver toda a magia e o encanto do sonho, isto é, se não houver aquela espécie de natureza imaginativa que nos preenche, dando a nós, em meio aos absurdos mundanos, uma vitalidade profunda e arrebatadora, que nos fornece toda a nossa essência e cede-nos uma visão cega e atenta do que se passa do lado de fora? Os cegos me inspiram: eles veem o mundo através da sensibilidade.
    Sabe, meu caro senhor, será que um poeta imagina, quando a poesia usa seu corpo como instrumento de escrita, que de alguma forma o que ele está escrevendo pode ter sentido para alguém tão distante, seja hoje ou daqui a uma porção de anos? Digo isso porque o mundo é bem estranho...         Há pessoas que existem, mas para outras pessoas não existem, e quem já não existe mais existe para outra pessoa. Explico-me: imagine o senhor que neste exato momento alguém vaga pela Avenida Paulista, alguém que nunca vimos e nunca veremos. Imaginou? Então, para nós essa pessoa não existe, embora exista; nunca a vimos, não sabemos de sua existência e por isso não a reconhecemos. Agora, peço que imagine o bom Álvaro de Campos: ele não existe, ele um dia existiu em alguém que também já não existe mais, entretanto, para nós, ele existe mais do que quem verdadeiramente existe! Como o mundo é louco, não?
    Quando você me fala sobre a fuga das personagens que hoje não quiseram ter com a sua inspiração, penso que às vezes são os escritores que fogem das suas personagens. Sol é um claro exemplo desse abandono por parte do escritor, que, temendo a conduta dessa mulher, procurou abster-se pelo menos por um momento da história. Mas confesso que, às vezes, escrever dá-me uma boa nostalgia das brincadeiras de infância, quando eu corria de um lado para o outro, naquela típica brincadeira simples e divertida que é o pega-pega. Talvez nos ocorre algumas vezes de não sermos tão espertos e hábeis quanto a personagem, e por isso ela nos escapa.
    Neste dia chuvoso, senhor da rua Cidade de Castro, tudo está vazio, menos eu. É que aprendi a preencher o vazio de sempre com o próprio vazio. Encontro-me no vazio. O coração humano tem muito disso.
    Aqui, senhor, as violetas das ruas estão belas e molhadas, lambuzaram-se inteiras de chuva e saciaram a sede; uma nuvem inteira passou por um processo imenso somente para dar de beber a essas pequeninas perfumadas.
    Mas, caro senhor, estas são só palavras, carregadas de preguiça e com sentido apenas para quem tiver algo dentro de si, justamente por elas não terem nada a dizer. São só palavras mesmo. Entretanto, lembrando Clarice, nós sabemos de muita coisa, mais do que imaginamos saber, acontece que nos fazemos de sonsos.


Um forte abraço deste,
Senhor da Rua das Violetas.

GUI RODRIGUES

19 de nov. de 2014

ABRAÇO DE IRMÃO





Embrenha teus cabelos cor de prata
Na manhã raiada de madeixas negras
Embrenha o eco surdo por teu sorriso cor de anil
Na manhã fria de outono quente
Estende hoje a mão que ontem negaste
Chora sociedade macabra teu nefasto choro de iniquidades
Chama para dentro de si os renegados do banquete
Diz que não existem; que são visões, Ignora teus restos nus nas esquinas,
Renegue tuas meninas, diz que é ilusão.
Embrenha a luz por teus cabelos cor de prata
Na manhã raiada de madeixas negras
E ensurdeça-se com o eco que vem das ruas
Surdo e amordaçado dos esquecidos,
Daqueles que não chamaste irmão;
Que se quer passou pelos pensamentos seus
Os mendigos das consciências
Os renegados filhos de Deus.


SÉRGIO SOUZA

17 de nov. de 2014

QUEM ME DERA


Quem me dera
ter o mundo inteiro
pra poder correr.
Correr sem nunca me cansar,
correr até faltar o ar,
até não sentir mais as pernas;
sentir o sol me banhar,
sair da escuridão das cavernas
e não mais me penar
em angustiante claustrofobia,
e ser para mim a minha companhia,
e ter para mim todo o mundo, todo dia,
o dia todo.
Quem me dera
correr descalço,
pelos campos,
pela areia,
pela neve,
passear leve,
pelas nuvens,
pelo céu,
por algum lugar distante
onde todos tenham asas.
Quem me dera
tornar-me viajante,
largar o peso,
estar-me ileso,
de todas as toneladas,
de todas as palavras
que, sutil e brutalmente,
foram lapidadas.
Quem me dera
despir-me da gravidade
para flutuar,
flutuar em liberdade,
pelo universo,
disperso entre as estrelas.
Abraçar a leveza
e nunca mais soltar,
viajar a lugares
onde se possa voar,
onde o infinito seja o chão,
e o chão não exista;
onde o céu seja o lar.

Quem me dera
correr somente,
esquecer, fugir, sumir,
até não sentir mais a vida.
Apenas sentir
outra vida que não existe,
mas que pode existir.
GUI RODRIGUES

5 de nov. de 2014

COMPOSIÇÃO



Beto abre a vidraça. Ela se remexia tentando romper o trinco, pois o vento batia forte querendo entrar. O sujeito dirigiu-se a ela, e, ao abri-la, viu-se defronte a uma infinidade de majestosos detalhes naturais, e não consegue evitar que seus olhos percorram a paisagem, e suas retinas pousam um tempo por sobre os morros verdes e longínquos. Há cinza no firmamento, na verdade, ele é todo cinza, já que uma nuvem imensa cobre tudo o que nele havia de azul. Somente aonde as vistas não alcançam é que a tinta celeste ainda era azul.
Alguns galhos de trepadeiras intrujonas penetram de fininho. Os ventos já haviam invadido o quarto de Beto, e agora não mais se agitavam com furor, apenas vagavam pelo ambiente, como se inspecionassem minuciosamente o local, querendo tocar até as partes mais sombrias desse quarto. O homem, ainda encantado, deixa que a brisa sopre em seu rosto, e fecha os olhos tranquilo; está melancólico, esse senhor, mas aprazido, pois recebe o beijo divino da Mãe Natureza, que o fascina de maneira tão vertiginosa.
Atrás dele jazia um grande amigo, o seu único amigo: um piano velho e já usado centenas de vezes. Quantas não foram as noites que esse parceiro deitou a cabeça de Beto em seu colo, cantando-lhe cantigas de ninar e lhe acariciando os cabelos, para que o pianista pudesse ter alguma tranquilidade dentro de si, ainda que fosse por míseros e apressados momentos – mas sempre tão intensos. Quantas vezes ele precisou fugir e o instrumento foi o único a lhe oferecer uma porta de saída, quando nefastas e horrendas criaturas da consciência perseguiam carnicentas e famintas esse angustiado homem...
O companheiro musical o saúda, e lhe convida para uma viagem. Beto, com o espírito massageado, sorri satisfeito e agradecido para o amigo, e novamente se volta à janela, aberta para ele como o céu para outras dimensões, deixando que o caos interior se aquietasse por alguns instantes.
Eis que um canto se faz em seu coração. Uma voz sopra na sua alma uma música, como se o Universo inteiro descesse quieto para cantar nos ouvidos desse homem a composição dos céus. Parecia um chamado. Coisa difícil é conter algumas sensações estranhas e maravilhosas que às vezes, tão de repente e fugidias, atravessam como uma espada o espírito, rasgando qualquer angústia que nele pudesse residir. Havia sido isso que ocorrera com Beto, não havia modos de conter a formidável alegria que o acometeu nesse momento; ele flutuou.
Então se volta novamente esse senhor ao piano, que o fita ainda com o convite em valia. Uma força o impele, e automaticamente ele se vai sentando, sem ajeitar o sobretudo que usava e aconchegando-se confortavelmente sobre o banquinho de onde comporia a trilha sonora da viagem de sua alma.
Assim que ele começa, a um leve toque nas teclas do piano, talvez tenha se aberto o céu, pois um impulso o invadiu logo no primeiro tilintar. E dentro dele algo se remexe, algo parece querer sair, se libertar de seu coração para as profundezas daquele quarto solitário. E ele não para, segue com os dedos a tocar, dançando leves pelas teclas do piano. "Oh solidão! Você escuta essa música? Que me importa se escuta?! Componho para mim, é somente meu espírito que pretendo atingir! O céu já me ouve, e isso me basta. A imensidão do firmamento é minha mais majestosa plateia, e eu o escuto perfeitamente, ele me diz o que fazer, eu apenas obedeço aos seus sussurros, que são os comandos do meu coração. O pensamento é como a sereia do mar que cada ser humano carrega no peito, o mar severo e calmo, o mar colérico e gigante, o mar de águas frias e salgadas, que com sua imensidão oceânica esconde a sereia, mas que, mesmo com toda essa grandeza, com toda essa infinitude, não cala o seu canto, e os navegantes exploradores são atraídos, hipnotizados, e não raro se perdem quando deleitados nos prazeres dessa voz interna que convida às mais profundas profundidades do espírito humano. Escute, solidão, o cântico do meu piano, e me deixe mergulhar-me em meu espírito na companhia da donzela dos mares, que me convida à escuridão de águas remotas".
Aquilo que está dentro dele quer cada vez mais sair, e à medida que Beto faz música, essa força parece ganhar força, e tamanho, e dimensões cada vez mais impossíveis de permanecer em seu corpo, até que, fugindo de dentro de si, dançando no ar como uma sereia a nadar pelo oceano, rasgando levemente seu peito, surge uma mulher flutuante, uma bela mulher flutuante. Não que fosse uma sereia propriamente dita, sendo metade peixe metade humana, era toda humana, inclusive, no entanto balançava seu corpo pelos ares como uma perfeita sereia, e por isso tanto se assemelhava a essa criatura mítica.
Ela se coloca acima do piano, e, quase toda nua, apenas com um lençol solto a cobri-la nas partes mais baixas, abraçando desde o tornozelo ao diafragma, deixando à mostra as mamas, divaga com prazer, como quem se deleita nos sopros da música. Mais parecia um espectro, pois de tão pálida, branca, quase transparente, podia-se ver, ainda que imperfeitamente, por através dela. As linhas de sua silhueta são esfumaçadas, e desses traços um vapor se desvanecia enquanto a mulher flutuava num delírio sereno. Parecia ser impossível senti-la com as mãos.
Beto está com os olhos fora de órbita. Não crê nas mentiras que as retinas podem dizer, tem medo, paulatinamente é hipnotizado. Coça as vistas, sacode a cabeça, balançando os cabelos ondulados; engole em seco, seu coração se acelera, e não percebe que mesmo assustado suas mãos não cessam a melodia. A figura misteriosa abre os olhos, e se coloca flutuante à frente do pianista. Ela o olha bem de perto, quase o toca, seus narizes estão a menos de um milímetro um do outro, e de repente a formosa criatura fez sorrir os seus lábios, incentivando Beto a não cessar jamais a música. O homem, atônito, embora tranquilo, apenas fecha os olhos, e não evita que pelo seu rosto triste escorra uma lágrima solitária, calada, que vai despencar de sua face ao seu colo.

Então ele abaixa a cabeça, guaia, solta o espírito, enquanto, no desempenhar da triste melodia que seus dedos executavam, a sereia dos pensamentos dança por sobre o seu único amigo, o piano.

GUI RODRIGUES

I
O som do piano é a alma do pianista
Esse alquimista das notas que faz da melodia
Seu meio dia, sua meia noite
Da vida sinfonia.
Evoluí numa mágica interna de vontades
Numa mistura surda de necessidades
Faz rima com o volátil
Sonetos com o tátil.
É sonho, é mistério, é ilusão
Sem corpo, é só coração
Suavidade melódica.
Ácido e suave, amor e ódio de casaca
Luz e trevas, desejo e desprezo atado
Composição de pé quebrado.
 II
Eu piano nos versos
Enquanto tu pianas na prosa
E nesse pianarmos,
Lançamos sons e ecos no ar,
Numa vontade louca e Beethoviana
Para ensurdecer o mundo,
E bailar com a Lua senhora e vadia
Fazendo chorar a noite com saudade do dia
Revirando madrugada sozinha na cama
Enquanto vagueia os dedos cegos no teclado
Ora preto, ora preto, numa alternância frenética
Da dor e do deleite, do negar e do sentir
No divino direito de pianar.

SÉRGIO SOUZA

EU VI O TEMPO! / EU NÃO VI O TEMPO!


Eu vi o Tempo
Sozinho na areia, era um rapaz, um menino
Com a carga definitiva do destino.
Eu vi o Tempo
Pensando parado com os olhos azuis
Perpetuados no azul das águas do mar.
Eu vi o Tempo
Com as marcas da alegria e da tristeza
Marcadas em teu corpo franzino de homem-menino.
Eu vi o Tempo
Fumando poesia, e um relógio na algibeira
Era dia, talvez noite, falando na voz do vento.
Eu vi o Tempo
Olhando o infinito finito da eternidade
Lembrando um tempo que o Tempo saudade não viveu.
Eu vi o Tempo
Passando a limpo na areia da praia
O texto verdade de cada tempo.
Eu vi o Tempo
Com todas as nossas feridas marcadas em si
Como medalhões de glória ou enlevo de sentir profundo.
Eu vi o Tempo
Com todo o carma do mundo
Na fumaça do charuto num tragar bem fundo.
Eu vi o Tempo
De longa barba, velho como o Tempo
Novo como o iniciar dos tempos.
Eu vi o Tempo
Falando sozinho na brisa do ar
Conjugando o verbo criar.
Eu vi o Tempo
Na sombra do coqueiro da pedra
Sob as folhas do Baobá.
Eu vi o Tempo
Senhor do passado, compreendedor do passado,
Imaginador do futuro, sonhando na voz da maré.
Eu vi o Tempo
Inspiração,  negação e sentido
E lembrei do meu tempo com lança ferido.
Eu hoje vi o Tempo
Preso e livre no azul infinito do olhar
Caminhando sobre as águas das pedras do mar.
Eu vi o Tempo!

SERGIO SOUZA

Eu não vi o Tempo!
Não sei quando foi
que o passado virou presente,
mas sei que,
de alguma forma,
aquilo que já é ausente.
nunca se foi
Eu não vi o Tempo passar,
Como sempre, eu não vi o Tempo.
ele passou.
e bem diante dos meus olhos sensíveis
Passou pra ser passado.
Quantas nobres crueldades!
Oh! Como minhas barbas cresceram!
Tempo, eu dormi todo esse tempo?
Eu não vi o Tempo;
eu vi água, mar,
areia, pessoas, céu, lua, mas nada de Tempo.
Nada dá tempo,
e tudo parece estar fora do tempo...
pontos de interrogação.
É que os ponteiros apontam
Mas as questões às vezes se afirmam.
Eu dormia
quando meu Tempo chegou.
de perto do Baobá,
Ele veio de longe,
flutuando, como um menino,
sorriu-me e disse:
pelos ventos do destino;
chacoalhou-me,
"Vamos, que eu sou o Futuro,
– que não se vê, que somente se sente – me presenteou:
e já é tempo de transformar!".
E o Tempo o Futuro, agora,
mora no meu presente.
E tudo passa.
Mas no momento
eu não enxergo nada...

GUI RODRIGUES

24 de out. de 2014

TRAJETOS E DESTINOS


    Céu avermelhado, paisagem seca, mandacaru por companhia, no horizonte um pouco de esperança, no destino esta bitola natural serpenteando o quase nada, respiro fundo uma gota d´água e sigo em frente enfrentando o sol, a morte, a solidão e a vontade e no meu matulão uma vontade de chegar para morrer onde a vida existe, onde, se o perigo persiste, Deus espelhou o céu.

    Ouvi falar, muito ao de leve, sobre outros companheiros por esse mundão imenso de meu Deus, amigos que correm trás-os-montes, que se enchem para dar vida aos lados ressequidos, amigos que até estão na história dos homens e de Cristo (louvado seja), amigos que nascem no estrangeiro feios e finos e viram mar em terras brasilis, falando assim e olhando para esse mundão de terra para velejar, vou me sentindo um desbravador, um conquistador, como um tal Cabral, tão Cabral como aquele que me disse sem plumas e me chamou de cão, tão andarilho como aquele Severino de tão severa vida, que morreu antes mesmo de viver, de palavras tão secas quanto às vidas gracilianas, que tão secas eram graciosas gracilianices da miséria humana, e os tais cabrais tão cabras como o cabra que era Fabiano, e minha esperança é tão vitoriosa como das sinhás do sertão.

    Mas seu moço-menino é hora de parar com esse proseio todo, pois o sol não abranda e o caminho é todo um destino comprido como a saga de Antônio, o conselheiro do sertão, e meu caminho é uma enfiada tal igual um canudo de zarabatana; avisa a Rosinha, seu moço, que eu volto, quando a pedra virar lama e a secura do mandacaru virar flor, avisa lá aos fortes destas terras que uma esmola para quem é são, mata de vergonha ou vicia o cidadão, a hora é chegada, quero partir com saudade de mim, para quando lembrar do senhor, seu moço é com a lembrança de ti, vou escrevendo minha história de poço em poço, de açude em açude. Adeus seu moço, vou buscar minha vida na hora que me entregar ao misterioso, portanto ainda o enterro espere no portal que o defunto ainda respira.

    Já fiz destas veredas minha eternidade, por aqui ando e perneio todos os anos fugindo da seca nas asas brancas da esperança de um dia não fugir mais disso não, voa sanhaço, voa beija-flor; corta caatinga, corta canavial, corta sisal; dança frevo; dança maracatu, olha a casa grande e a senzala, lá vem o Bacalhau do Batata; ó linda imagem que seduz, Olinda, e como uma Maria-fumaça cortando e costurando feito agulha endoidecida fazendo união, como aquele irmão da Serra da Canastra – Vou-me encontrar com ele lá no riachão, que é o fim de tudo – daqui donde estou, já avisto um horizonte esverdeado da mata da zona, o vento parece já ter frescor e o volume vai se aumentando, arrastando terra, abraçando as pedras; por entre sons e jaqueiras, crianças molhadas, mulheres lavadeiras, roupas nos varais de cordéis, vitalinos, mestres santeiros, lampiões caolhos e marias bonitas (mulheres damas), vou despencar..., lá vem usina; olhe lá, seu moço, que tanto de perna é aquele no meu caminho? Não é perna não, seu moço, é palafita é gente que mora em cima de mim, puxa o guaiamu, retira o peixe, lá vem sujeira, sai da frente, seu mestre, lá vem besteira em turbilhão molhando a esperança de um dia não esperar por mais nada não; corta rua, corta ponte, corta o holandês, corta a Rua da União, onde desfraldam bandeiras e jogam feijão queimado na casa onde dormem a tristeza e a alegria de Totônio Rodrigues.

    Vejo já bem perto o azul do azul que se mistura nesta massa nem verde nem azul e é para lá que eu caminho, é lá quero me misturar com aquele irmão de nome de santo, São Chico dos Necessitados, que me traga um gosto de piqui, e lá quero rever o irmão do norte cheio de verde-mata que mata de orgulho quem vem da caatinga rala, podem chamar os carregadores que o defunto quer ir embora, avisa lá que eu vou sublimar um dia e voltarei para de novo fertilizar a as pedras com meu suor, adeus mestres carpinas, adeus coveiros de Santo Amaro e Casa Amarela, adeus Recife belo, adeus Recife triste como a casa do meu...avô.

   Enterrem as minhas lembranças á sombra do umbuzeiro e escrevam na pedra da lama – Capibaribe!


SÉRGIO SOUZA

É POETA...



É POETA, 
CÁ ESTOU OUTRA VEZ COM O DEDO NO TECLADO
MAS TAMBÉM NÃO SOU MAIS O QUE JÁ FUI
SEM A COMPREENSÃO DO QUE SEJA DAR OU DOAR
E SEM ENTENDER O QUE JÁ SE CUROU, TALVEZ POR CONSTRUÇÃO CONFUSA.

É POETA, 
CÁ ESTOU DE NOVO COM O DEDO NO TECLADO
COM A MÃO NO PENSAMENTO E OS FATOS QUE ME CIRCUNDAM
SURDO PARA AS FUTILIDADES, E MA PARA AS INUTILIDADES, E PARA AS VERDADES
CEGO PARA O QUE NÃO QUERO VER, INEXISTENTE PARA OS GRITOS Á MINHA VOLTA.

É POETA, 
CÁ ESTOU PENSANDO OUTRA VEZ NAQUILO QUE UM DIA FOI VOZ GRITADA
DENTRO OU FORA DO SER, 
É POETA, ESTOU AQUI COMO SEMPRE ESTIVE PENSANDO NOS ECOS E VERDADES
E NAS MENTIRAS QUE DISSE A MIM MESMO, DOS ENGANOS QUE NOS ENGANAM

É POETA, 
NEM SEMPRE O CANTO DA SEREIA É VERDADEIRO, 
CABE AO PESCADOR DESCOBRIR QUE AS ÁGUAS NEM SEMPRE SÃO TRANQUILAS.

É POETA, 
CÁ ESTOU DE NOVO COM O DEDO NA FERIDA, VIDA.
SONHADA, VIVIDA, SOFRIDA, COM TODAS AS RIMAS, MAS COM SUAS MANIAS
SEUS MEDOS E AFAGOS, ESQUECEMOS DESTES E NOS CEGAMOS NO SANGUE
QUE NOS IMPUSERAM.

É POETA,
A VIDA, DIZ O POETA, "É A ARTE DO ENCONTRO, EMBORA HAJA MUITOS DESENCONTROS PELA VIDA!"

É POETA, 

MANDARAM -ME VIVER, MAS ESQUECERAM DE ME ENSINAR A SORRIR PLENAMENTE, ENTÃO LEVA-SE A VIDA E OS FATOS, OS FARDOS COM O RISO FALSO DA ALEGRIA.
CAMBALEANDO E SE ESQUECENDO, 
UM DIA MARIA OU DIA JOÃO.


SÉRGIO SOUZA

12 de out. de 2014

AMORIZADE


Um dia, um instante, olhares, corações,
Vontades de praias, e bosques, ilusões,
Na tarde noite, no dia manhã,
Caminhos e Luas, Sois e Ruas
Sem palavras, sem escritas,
Mãos unidas bem ditas
Interiores a credita, nuvens e chuvas.

Um é Sol outro a Lua,
Outro Caminho, um Rua,
Um sorriso, outro lágrima,
Outro Paz, um Paixão,
Um verso, outro Poesia,
Outro Noite, Um Dia,
Assim segue a sinfonia da vida
Criação divina que nos convida,
Instiga a criação e a conquista,
Fazendo marionetes ilustres do prazer de respirar.

Quando tudo vira um só contexto
As vidas viram tema e bandeiras e pessoas,
Um é linha, outro caneta,
Outro pretexto, um Papel,
Um ponto e vírgula, outro Texto.

SÉRGIO SOUZA



TRILHA


Uma chuva, um sorriso, uma avenida, 
Um afeto, as mãos, união da vida,
Um natal, uma foto, uma Paulista,
Os olhares, o espanto, olhar, a vista.

Um café, uma esquina, volta e ida,
A troca, o livro, escolhas, a medida,
A gula, a vontade, o desejo, uma conquista,
O universo, um instante, um beijo, asfalto, pista.

O inicio do trajeto, mistério e corações,
A selva armada é cenário de sentimentos livres,
A eternidade é logo ali nos palco das emoções

A realidade dupla que o mundo esconde no timbre
Uma poesia no desejo oculto é caminho das ilusões
Uma música, um querer mais, uma saudade, corações.


SÉRGIO SOUZA

9 de out. de 2014

MEANDROS



Amizade? ...................................Tudo!
Carinho?......................................Necessário!
Saudade?......................................Dor!
Medo?..........................................Perder quem ama!
Sonho?.........................................Imprevisível!
Futuro?.........................................Ruim, incertezas!
Decepção?....................................Ficar sozinho?
Tristeza?.......................................Ficar sozinho?
Alegria?........................................Amigos!
Uma palavra?...............................UNIÃO!
Um sorriso?..................................Verdadeiro!
Um olhar?.....................................Sincero!
Um abraço?...................................Apertado!
Prazer?..........................................Incontrolável!
Conquista?....................................Vida independente!
Popularidade?................................Não é tudo!
Amor?............................................Um sentimento lindo!
Sinceridade?...................................Necessária!
Solidão?..........................................Desespero!

Por mais palavras que diga,
Por mais terras que percorra
Não há verdade mais sincera que a mentira,
Nem necessidade tão inutil quanto a solidão,
Conquista mais breve  que o prazer,
Ou um sentimento mais lindo
Que a conquista de um amor;
Entre meio o desespero da solidão.

Por mais decepção que sofra,
Por mais sozinho que a tristeza me deixe
A união das mãos e dos lábios e dos corpos
Ainda será a  única forma de salvar a humanidade.

 Tem horas que me perco sem você aqui..........Minha sanidade!

SÉRGIO SOUZA

SEM INSPIRAÇÃO OU ABRINDO O ZIPER



Será que a eternidade também sofreu ou sofre da crise de criatividade?
Será que a vida também sofre a crise de inspiração?
Se são as perguntas que giram a roda da existência, eis ai duas para as quais não se encontrou resposta, nem na realidade, nem na virtualidade, verdade é, que a alma se perde e se acha num jogo estranho de nunca perder ou ganhar, vivendo num empate constante; já cansei de esperar, de pensar ou lutar por tudo o quanto desejo, mesmo sabendo que o ensejo a nada se destina, por mais ou melhor que se aproxima, fiz versos, poemas, perdidos neste gosto, neste dilema, no sonho de cada um, no seu sonho; que dorme por outros olhos, enquanto os meus se opacam nas lágrimas da solidão, de  há muito, tenho a vontade de me deixar de mim mesmo, faltou coragem; pois mesmo sendo minha sorte vadiagem, sobra esperança e letras para contar saudade de ti que brota dos olhos ou de outros pontos extremos das mãos ou dos olhos distantes, ou nos pés por muito que caminhado tenha por te encontrar e outros tantos por te perder.
Será que a eternidade também perdeu a luz da sensibilidade e deixou de criar o tema da vida que uns chamam de amor, outros de sedução? Embora o importante seja o coração, mesmo que os destinos sejam outros caminhos, mas que um dia se encontrou, mas destino cruel, fel do organismo da vida, separa, por interesses diversos, perdidos sem versos na poesia das salivas, na boca sem riso, dos lábios de vontade, chora necessidade, caminha valente-covarde Quixote- Pixote seus passos em busca de seus muitos paços sem limites, por muito que o outro imites seus moinhos de ventos são tantos, mas sem Dulcinéias ou Doroteus, pois seus cantos se perderam no tempo esquecidos nos cantos e recantos da vida.
Viva a solidão dos indefesos e a pobreza da nobreza dos sabem muito, a hora aflitamente angustiante dos gênios, daqueles que sabem a razão, mas não explicam o sentido, verdade é que perdi a inspiração, perdi nos olhos de um anjo, no som  de um banjo, numa rima mau estruturada, perdi o presente com medo do passado e sem acreditar no futuro, perdi na dúvida incerta que é a única certeza, talvez tenha ficado nas areias das praias ou no asfalto de uma estrada distante, ou na devoção de uma lida insólita.
Reverencie, poesia, as vítimas da fome de vida e sentimento; os desabrigados dos tufões e terremotos e os desvalidos da sorte; na espera da morte; sorria a alegria triste do homens do mundo-Raimundo, meio rima, meio solução; somos massa da mesma lama, sonhando com a mesma cama ou fama única de um só fã, o reconhecimento; ensina professor a lição que você mesmo esqueceu, aprenda o que esqueceu na poeira da estrada.
Apesar dos pesares o peito ainda acredita, o cérebro medita, as mãos buscam, todos buscam eu a você, e mesmo que em dúvida você também busca, um caminho, uma mão, um peito, um respirar de sua essência, porque a vida a pesar dos pesares vale a pena, mesmo sem destino, mesmo sem carinho, mesmo esperando a morte que se vive um pouco por dia, mesmo sem homenagem ou feriado.

SÉRGIO SOUZA

RISCO E RABISCO



Deixei que a mão da poesia rabiscasse um poema,
Que contivesse o cheiro das terras molhadas do interior,
Que esquecesse os crepúsculos nostálgicos, àquela hora do nada,
Hora aberta do não ser dia e nem noite.
Mas que contivesse a esperteza da beleza safada dos neurastênicos do litoral,
Que não fosse invasivo, mas verdadeiro, que não esquecesse a certeza das ruas,
A libido dos alegres alheios aos tormentos dos que fecundam o sentimento.

Deixei, sem medo, que a mão da poesia rabiscasse um poema,
Que não falasse dos dilemas e incoerências e demência,
Mas que fosse livre das liberdades estabelecidas, das forças ocultas,
Das psicologias e dos divãs das manhas e manhãs sem maçãs,
Cujas palavras não tivesse recado, mas a maravilha da consciência,
Que não mencionasse a História ou Geografia,
Mas a ilusão poética e patética dos soltos ares
Dos versos de Moraes.

Uma poesia que não tivesse data ou dia
Nem João, nem Maria de açoite,
Nem tarde ou noite, só uma poesia...
Sem batucadas das madrugadas,
Ritmo ou cadência,
Que desprezasse a indecência da chegada ou da partida.

Encomendei á mão da poesia um poema,

Só um poema, sem eu ou você, mas todos nós,
Com todos os nós que empatam o jogo das verdades,
Com cheiro de poeira de estrada e a maresia da secas sertanejas,
Que tivesse o esquecimento da lembrança,
Um toque de adulta-criança, o adultério das confidências,
Nem popular, nem erudito, só palavras,
Ao léu, ao vento, sem saudade, sem verdade, sem mentira,
Só o passo do compasso de quem anda sem sair do lugar,
De quem corre para não chegar.

A mão da poesia escreveu um verso que fosse tão somente um laço,
E deixou, para que nunca chegou, porque nunca partiu,

Aquele abraço!

SÉRGIO SOUZA

ESTRELA DE PAPEL



Por mais que falte a inspiração
Não falta o coração-sentimento
Um instante ilusão, outro inquietação
Vem do mar a vontade,

Vem da rua a coragem,
Um momento de olhar estelar
Uma mão que se sustenta
A única luz que esquenta,
São bocas sussurrantes.

Por mais que falte a inspiração
O Sol abraça o dia
A Lua invade o mar
Na onda que se anuncia
Navegantes da ousadia
Transeuntes de uma só rua
A estrela de papel domina o céu
Num desejo e vontade sua
Misto de ensejo e delírio seu.

SÉRGIO SOUZA

ASSOVIO




Quem me pariu foi a savana,
No fundo do mundo sem cor,
Com a marca do sol e a força da dor,
Para pensar no momento,
Para ser o instante da flor,
Mistura dourada dos rios
Sentido único e frio.

Quem me criou foram as águas
Nascentes de sonhos e mágoas,
Torrente de criações e vida.

Quem me nomeou foi o destino,
No vale das vontades e desejos
Ensejos e liberdades, quem me guiou foram as feras,
Por montes, vales e fendas das eras.

Portanto quem hoje manda no meu caminho
É a certeza, filha da mãe das rochas.
Irmã da luta, prima da labuta,
E quem no sentido se perdeu,
E quem comigo não “veredeou”, não sabe o que é ter,
Conhecer o sol por norteada e ter a lua como camarada,
E as classes na forma verdadeiramente amada.

Quem me pariu foi o canto, na manhã clara da sorte
Quem me embalou foram as águas doces
No sobrado dourado que se ergue nas areias de minha mãe,
Quero correr correntezas, valando os vales em busca da dignidade,
Dos que constroem e não habitam.

Quero ser a liberdade do cativeiro, dos disfarçados negreiros.
Vou aprender a ler, para ensinar os meus camaradas.

SERGIO SOUZA

30 de set. de 2014

UM TIRO NO METRÔ



O carro policial irrompe aos berros de sirene pela Avenida Central congestionada, elegante e espremida entre prédios imponentes e sem cerimônias sobe na calçada e Moura, um agente policial, abre caminho dentre os curiosos que se aglomeram na porta da estação do metrô, descendo as escadarias com rapidez que não combinam com seus anos de idade, segundado por Matias, um jovem que ainda estagia na policia; na plataforma lá estava um corpo banhado em sangue vitima de um tiro certeiro e único disparado por outro rapaz, que segundo testemunhas era muito parecido com a vitima, alguns chegavam a afirmar que poderia até ser um “auto tiro”. Não tarda chegarem os fotógrafos dos jornais e câmeras das emissoras de televisão, Matias toma o pulso do atingido e declara que ainda existe um fio de vida, Moura aciona, pelo telefone celular, uma ambulância, que tal como a polícia rasga a Avenida Central com a rapidez de um raio, Moura entrega a ação aos paramédicos que com todo cuidado preparam a vítima para o transporte emergencial. Passado o instante primeiro fica a dúvida, quem teria desferido o tiro neste rapaz, que Matias identificara por sua identidade chamar-se Eduardo Novaes e ter 25 anos, o que de tão grave fez este moço para ser tão brutalmente alvejado diante de todos numa estação do metrô? Essa era dúvida dos atônitos que presenciaram o fato. Após os trabalhos de praxe para averiguações e investigações, Moura interroga o chefe da estação que menciona outro rapaz, praticamente da mesma idade que desaparecera na multidão subindo a escada rolante na contramão, afirmara ainda que as aparências eram semelhantes, ambos, vítima e agressor possuíam cabelos pretos lisos, pele morena clara, trajando camisa branca e calças jeans, um detalhe interessante, ambos trajavam roupas semelhantes, a diferença estava na camiseta branca com estampa de uma banda internacional, porém de fundo branco; hoje, meu caro senhor Lauro, diz o agente Carlos Moura, as pessoas se vestem todas iguais, parece que saíram todos da mesma fábrica ou compraram na mesma loja; acho isso uma falta de personalidade, está todo mundo com a mesma cara. No caminho de volta para a chefatura de polícia o silêncio predomina dentro da viatura, ambos os agentes conversam com suas dúvidas, até que Matias quebra este silêncio perguntando para Moura, por qual motivo alguém cometeria um ato impensado desses colocando em risco a vida de tanta gente, a que este praticamente balbucia uma resposta inaudível fazendo com que Matias se recolha ao seu próprio silêncio. A ambulância chega ao pátio do hospital de clínicas, que não era longe do local do fato, médicos avisados já a esperava para uma intervenção para extração da bala, que mais tarde se soube alojara-se no pulmão direito e passara a milímetros do coração. Eduardo agora era conduzido para a U.T.I. em estado grave inspirando todo cuidado disponível. Já na chefatura Moura adentra sua sala dirigindo-se à mesa do café, tomou-o de um único gole, acendeu seu cigarro, companheiro de todas as horas, acomodou-se na cadeira, soltou um tufo de fumaça mantendo seu semblante fechado, com ar de indignação, Matias sentado observava as ações do chefe, Matias daria a vida para saber o que ia pela cabeça grisalha de Moura, que estava a um dia da sua aposentadoria depois de quarenta anos de serviços prestados, tantos plantões, muitas noites de pizzas frias, de casos insondáveis chegava ao fim, quando de repente surge mais um enigma na sua frente: um insondável tiro na estação do metrô. Sem dirigir palavras apanha seu sobretudo e seu inseparável chapéu panamá e deixa a chefatura em direção ao pátio onde estacionara seu velho carro popular dos anos 60, deixando Matias confuso e curioso sentado em sua mesa de estagiário. No caminho de sua casa, na zona leste da cidade, pensava na aposentadoria, nos tempos bons, dos amigos que tombaram no cumprimento do dever, no sonho de uma chácara onde criaria galinhas e muitos cães, lembrou-se de Madalena, a meretriz da Rua das Flores, que prendera várias vezes por desacato e desordem quando prostituição era chamada de vida fácil, uma carreira de quarenta anos passa por sua cabeça, mas... quem dera o tiro do metrô? E por quê? Seria uma covardia aposentar-se agora sem desvendar este mistério, decidiu, por um instante, deixar tudo para lá, mas voltou atrás, iria resolver só este caso e aí sim, poderia criar suas galinhas. Sentia-se envelhecido, cansado, já cometera bobagens por conta do cansaço, como prender alguém antes do delito cometido, estava desenredando. A paisagem, e o ar fresco suaviza por definitivo sua alma, até que o veículo empaca, esquecera-se de colocar gasolina, era comum o ato falho, empurra-o até o meio fio e olha para avistar um posto, admira a paisagem da cidade grande, que de tão grande já não o cabe mais, quando seus olhos param no alto de um morro, uma casinha simples, caiada, lembrava-se dos dias que por ali passou e sem querer desviava para ver Laura, sim, Laura; por onde andaria Laura, lá se vão 25 anos desde então não a vira mais, era uma dançarina da boate La Coste, ficava ali na rua da Figueira, lugar não muito bem frequentado, era uma zona de meretrício, mas Laura era linda com seus olhos esverdeados, ancas suaves, muitas fezes passara por ali para ter com ela, viera com Laura um momento de oásis nesta vida incompleta de um agente de polícia, vinte e cinco anos... Por onde andaria? Como estaria agora depois de um quarto de século? Tinha na época vinte e três anos de uma vida irregular, viera do interior, fora posta para fora de casa depois que o pai descobrira que fora deflorada pelo capataz da fazenda com quem mantinha um morno namoro, tabus de uma época que ficaram vinte cinco anos atrás, hoje não há meninas virgens ou ninguém mais põe filha na rua por isso. Moura distraiu-se retornando a um passado distante feliz e conflitante, era viúvo, a lembrança deste fato, deste adultério remetia-o também ao cemitério, fora um casamento sem felicidade, casara sem amor, sem desejo, Lúcia era uma mulher fria, distante, desinteressante, conta nos dedos os momentos de intimidade com ela, mas Laura não, era quente fogosa, amante, verdadeira, sabia ser mulher sob os lençóis. Puxou do fundo da alma um golpe de ar, expirou o ar da saudade naquela fria manhã de solidão enevoada; voltou-se para o lado e percebera que ali parou para buscar gasolina, caminha. Na chefatura as coisas prosseguem como se o mundo estivesse encarcerado, uma mulher presa por discussão com a vizinha e o marido detido por espancar a esposa, rotina triste para um estagiário como Matias, porém no infinito do seu interior pensa sobre o delito da quase manhã no metrô e sobre o enigma que reveste a figura de Moura, percebeu que ele tratou o fato com a frieza de um iceberg, com o profissionalismo quase automático, não se intimidou com o choro das senhoras em desespero, nem com o alvoroço dos homens, nem com a atitude precisa dos paramédicos, que alma teria Moura, o que aqueles olhos cansados teriam visto ao longo da carreira, pensava que um dia queria ser como ele, agente que jamais perdera uma causa, sempre resolvera seus delitos. Depois de alguns dias com a alma praticamente entregue ao criador Eduardo parece que vai sair do como induzido em que fora submetido pelos médicos, afinal não seria desta vez que deixaria a vida para virar estatística dentre os mortos, mas não escapara da estatística dentre os sobreviventes. Porém um fato intrigava enfermeiras e médicos, quem seria aquela mulher que não mostrava o rosto que o visitou por duas vezes nestes últimos sete dias em que esteve na U.T.I.? Misteriosa e calada parou, sempre que lá esteve, por no mínimo umas duas horas diante do vidro olhando fixa, um capuz enorme cobria-lhe a face, trazia na mão um rosário de contas e passava a rezar baixinho, petrificada, tal como uma estátua, depois saía de cabeça baixa, descia as escadarias e sumia ao ganhar a rua; seria, quem sabe, uma dessas freiras caridosas que percorrerem hospitais intercedendo, com suas orações, pelos enfermos? Eduardo, depois se soube, era um jovem ator, cursara arte dramática numa universidade de outro estado, fizera dança também, era, quando se pode ver, um rapaz de traços suaves e delicados, gentil, educado, fizera até uma semana antes do tiro, parte de uma peça em cartaz na cidade, mas que terminara sua temporada; soube-se disso quando Emanuel visitou-o no hospital, pareciam amigos, pois este lamentou bastante o fato ocorrido e mais uma vez a pergunta cruzou os ares do ambiente sem resposta, quem fizera isso? Afinal Eduardo parecia inofensivo, nunca se soube de algo que o comprometesse, nunca se falou de qualquer envolvimento sentimental, aliás, estranhava-se muito, pois com os traços de Apolo, era assediado, mas sempre se mostrou distante, Emanuel talvez tivesse mais detalhes, pois eram quase que inseparáveis, que segredos teria ele guardado sobre Eduardo. Naquela noite, após voltar do hospital, Emanuel ligou para Alexandre e disse que o amigo ator estava se recuperando bem, Alexandre do alto de sua arrogância não pareceu importar-se muito com o fato, limitou-se a um: “tanto melhor, assim você fica menos agitado.” Alexandre era um alto funcionário de um banco na avenida central, casado com Emília, não tinham filhos, ele não suportava crianças, chegara a cursar economia, mas se formara em administração de empresas, sempre pareceu incompleto, irritadiço, mas Emanuel parecia saber lidar com isso, logo desligou o telefone depois de mais uma ou duas palavras; sentou-se recostado no sofá com olhar fixo no teto e ali ficou até dormitar. Eduardo, no seu leito de hospital teve algumas visões de sua vida, recordou da infância sem mãe biológica, pois fora criado desde os três anos por uma família de classe média na zona oeste da cidade, tivera carinho, tivera estudo e compreensão, mas suas origens o intrigava, por que seus pais o entregaram a esta família, da qual se afastou assim que concluiu o curso de dança na Europa, há tempos deixara de visitá-los, o ferimento doía, chamou a enfermeira, deram-lhe um sedativo, o pensamento vagou, pensou ter visto uma mulher que o olhava fixa, não era sua mãe adotiva, mas era noite, as visitas acabaram às quinze horas, delírio certamente, mas ali estava estática aquela figura, doce, suave, meiga, sem rosto, porém; não conseguia enxergar, era certamente efeito do remédio.
Adormeceu. O dia amanhecia; o sol rasgava o ventre da natureza manchando o céu de vermelho alaranjado num eterno parto da existência, Moura levantou-se depois de passar uma noite quase toda em claro pensando em Laura, repassando vinte cinco anos de vida, relembrava-se do dia que a encontrou na boate, ofereceu-lhe uma carona e acabou com ela num quarto de um hotelzinho barato da Rua da Figueira e assim transcorreram-se muitos encontros, tornaram-se amantes, era uma mulher diferente, amante vigorosa, consciente de sua posição social, foram muitos os encontros, até que depois de uma noite linda de prática de amor, acordou abraçado à solidão, Laura levantara-se cedo e sumira como se esvai a fumaça no ar, procurou por dias, meses, vinte cinco anos, por onde andará Laura? É a pergunta que não tem resposta para este investigador implacável, resolvera tantos casos indecifráveis, mas não resolveu o seu próprio, alimentou o seu cão de estimação e rumou para chefatura de polícia, pensou pelo caminho de congestionamentos tão longos quanto os vinte cinco anos de busca, passou pelo morro da casinha branca, caiada, e prometeu a si mesmo que depois do expediente passaria lá, quem sabe lá não estaria Laura. Na chefatura Matias se antecipara em um caso de latrocínio, meliante perigoso assustava a população de um cortiço, Matias, sempre fiel, recebera a denúncia e já organizara a diligência, Moura adentra a sala com o seu ar imperial e já se posiciona para comandar mais uma busca, ajeita o revólver na cintura, coloca o distintivo no peito, chama Matias com um aceno e desce as escadarias e apossando-se do banco do lado do motorista que não por acaso era Matias. O local era estarrecedor, sombrio, mas ali amalocara-se um bandido perigoso e fazia os moradores seus reféns, agora o acusavam de ter matado e roubado o salário de um dos muitos pais de família ali existentes. Moura olha da rua o cortiço como quem fareja tal um perdigueiro a caça, sem palavras apontou para uma casa de cômodos com o cadeado amostra, Matias retrucou: “Chefe aquela porta está trancada por fora, não pode ter alguém ali.” Moura não lhe deu ouvido e subiu como um raio a escadaria encardida do cortiço, percebera que havia luz pela soleira, gritou: “Abra!” A luz se apagou, tornou a intimar, sem resposta; meteu o pé na velha e deteriorada porta que veio abaixo sem muito esforço, mas assim que ela caiu dois estampidos foram ouvidos, Matias se abaixara, os moradores curiosos sumiram, ao levantar a cabeça Matias percebe o chefe em pé a sua frente, concluiu; o bandido morreu. Sem piedade Moura estourara o assassino e sem saber libertara um garoto de uns cinco anos que ele tinha por refém, uma senhora piedosa olhou fundo em seus olhos e perguntou-lhe: “Será que ele vai para o céu?” Secamente Moura responde: “Por mim já foi!” Desceu a escadaria como quem conta os degraus, acendeu um cigarro, sentou na viatura, Matias incrédulo o segue à distância. No caminho de volta para a chefatura, Matias o indaga sobre como descobrira o quarto certo do bandido, a resposta foi o sempre silêncio que rodeava aquele homem de meia idade e que se orgulhava dos tantos anos emprestados à policia. Sua cabeça era um mistério. Resolvido o caso já pensava em outra coisa, no intrigante caso do metrô, quem seria o atirador? Por qual motivo o fizera? Refez o caminho das escadarias mais uma vez, verificou a angulação do tiro, revirou a cena do atentado por mais de três vezes, seu faro parecia falhar neste caso, desvendara casos mais difíceis, como o da joalheria da Praça da Matriz, abriu um leve sorriso, eram profissionais. Resolveu visitar Eduardo no hospital, melhor interrogar; ao adentrar o quarto sentiu algo como um repuxo no peito, as mãos frias, seu olhar cruzou com o do garoto, mas ele jamais fraquejaria em ação e desfechou uma pergunta: “Tem ideia de quem fez isso com você?” Diante da reposta negativa continuou; sabemos que mora na Rua da Consolidação, a metros da estação onde foi alvejado, num apartamento de dois quartos, é só e que trabalha como ator e dançarino: “tem namorada?” “Não.” Nunca fora visto com alguém, nunca apresentara nenhuma companhia afetiva, talvez Emanuel soubesse mais sobre esta vida misteriosa, Moura sai do hospital com mais dúvidas do que entrara uma certeza, porém ele tinha, de que desvendaria o caso. Emanuel era seu vizinho do andar de cima, conhecera Eduardo do subir e descer dos elevadores e foram travando amizade até tornarem-se inseparáveis. Era um rapaz de uns vinte cinco anos, alto, magro, negro, como Moura, formado em direito, mas tinha uma pequena rede de lanchonetes em médias livrarias da cidade, tinha em Alexandre um grande amigo, mas estranhava o fato deste manter um apartamento alugado no andar de baixo, nunca o convidara para visita-lo lá, e pedira que nunca comentasse com sua esposa o fato, Emanuel estranhou, mas manteve o segredo, verdade é que passava horas lá dentro após o expediente, nunca vira entrar ali ninguém acompanhando Alexandre, não podia ser um apartamento de encontros, certo que Alexandre não gostava de Eduardo, embora fossem vizinhos de parede, mas nunca se encontravam, pois Eduardo era notívago e Alexandre era o senhor do dia, eram sol e lua, numa dessas comparações poéticas. Moura levantara todos estes dados, pusera seu fiel estagiário para trabalhar, o que guardaria Alexandre no apartamento clandestino? Talvez fosse um dos chefes do tráfico de heroína, que a esta época grassava na cidade, cativeiro para sequestrado? Moura conseguiu um mandato para verificar o imóvel e o fizera, mas nada encontrou; tudo perfeito a não ser o fato de que lá só tinha uma cama de casal, um fogão e um armário embutido, documentos da empresa sobre uma mesa, mas arrumado com cuidado, embora nunca se vira nenhuma faxineira por ali. Isso aumentava a curiosidade de Moura. O expediente terminara naquele dia ensolarado, o agente se dirige para casa, é hora de cumprir a promessa do início do dia, subir o morro e desvendar a casa caiada, o ar se desanuvia só por pensar que poderá encontrar Laura, a mulher dos seus sonhos, sentia-se refrescado só com a ideia, embora fosse um dia abafado, percorre o caminho com a calma dos justos e o anseio dos amantes, ofegava internamente, parou diante da casa que de perto tinha um aspecto triste, algo com cheiro de passado, a cal que a revestia trazia a marca do tempo, o jardim aparentava não ver um cuidado por vinte cinco anos, teve medo interior de ver o que poderia encontrar ali, mas nada intimidava o velho Moura, vira coisa pior ao longo da carreira, bateu palma forte como a saudade que o instigava, depois de alguns longos minutos a porta rangeu em abertura como quem geme ao peso do tempo, o fundo escuro, nada ali inspirava claridade, uma senhora de cabelos desgrenhado, grisalho, gorda, pele enrugada, flácida, de um caminhar ledo como tempo e voz pastosa, vestindo um largo vestido florido de pano vagabundo, sorriu um sorriso de destes cariados, chinelos gastos com o tempo, calcanhares rachados e cascudos, era uma visão de quem emerge da tumba depois de vinte cinco anos de morta. Seria esta a linda Laura, pensou com seus botões o experiente Moura. Calou-se diante do fato, a situação era constrangedora, era essa a linda moça que conhecera anos atrás? O que acontecera para tamanha transformação? Puxou o ar com a força de um náufrago, acertou o chapéu panamá na cabeça e disparou certeiro como seus tiros de função: “Procuro por uma moça chamada Laura, a senhora a conhece?” Tinha na memória a imagem singela da moça, não este farrapo humano que se lhe apresentava. Podia sentir nos lábios o calor da saudade de seus beijos, a mão suave deslizando sobre seu robe abarcando coxas lisas e trêmulas de desejo, sonhou ousadias, parou no tempo feito um colibri diante da flor, o pensamento vagou no tempo, era a mera sombra da lembrança que o abraçava naquele instante; não, eu não sou a Laura, ela morreu há vinte cinco anos. A resposta cruzou o ar como um raio cruza o céu em noite de tempestade, feriu seu peito uma flecha disparada pelo tempo, as mãos esfriaram, a cabeça girou com o vento frio que começa anunciando o entardecer, petrificou-se, “a vida a maltratou muito, não resistiu às desventuras que a vida lhe ofereceu e fraca entregou-se à bebida e ao cigarro e definhou, murchou como um maracujá largado no campo, teve que entregar seus filhos ao mundo por não poder criá-los, isto a lançou no fundo do poço e a beleza desmanchou-se, homens desapareceram, fora lançada fora como o bagaço de uma laranja..” Via-se então o que ninguém jamais vira, Moura fraquejar e uma lágrima, única, solitária, triste, desce lentamente por sua face marcada por muitos momentos difíceis. Passou a mão sobre a face espantando a tristeza, agradeceu e voltou às costas para sair; “Quem é o senhor?” Indaga a sinistra figura, o agente policial Moura, minha senhora; respondeu ainda de costas. Um silêncio de vinte cinco anos tomou o instante, a casa caiada parecia receber certa iluminação, “Quem?” Reforça a pergunta a mulher. “Moura, agente Moura”, reafirma. Espere um instante, afirma a mulher, entre, já que veio procurá-la entre. Moura pensou, mas aceitou com passos contados e acompanhou a velha senhora, adentra a soleira da porta com o receio de quem adentra um túmulo em exumação, uma sala trastejada de móveis envelhecidos, almofadas encardidas, um velho gato dormita sobre a cristaleira vazia, tudo ali remete a um passado, cheiro, tempo, verte passado, uma velha xícara descansa ao lado de um bule ainda morno, como a situação, “Aceito um café?” Moura agradeceu, dispensou o mimo, seus olhos pararam quando reparara que sobre a cristaleira jazia um retrato, o retrato do passado, amarelado, em branco e preto, manchado pela umidade das goteiras, era ela, Laura, ainda exuberante envolta em buás, dentro de um maiô justo, as pernas à mostra, era ela linda, o coração pareceu renascer, o ar voltou, rejuvenesceu vinte cinco anos, todo este tempo não pusera os olhos sequer numa fotografia dela, era o êxtase. Moura, disse a mulher em voz quase inaudível, eu sou a mulher da foto, Levantou-se num susto, como se me disse que ela morreu? Indagação que já vem respondida negara ser Laura porque tinha vergonha do que tinha se transformado, um farrapo, mas reconhecera o agente assim que abrira a rangente porta, quisera se esconder, mas não aguentou e agora revela sua real identidade, disse ter dois filhos gêmeos e que os entregara à roda dos enjeitados da Santa Casa e que não tinha a menor ideia de por onde estariam, disse que foi se acabando por conta disso, se prostituiu pelas avenidas, se entregou a qualquer um como um pedaço de carne desprezada, se puniu, chorou e agora doente esperava a morte ali na sua eterna sepultura, Moura estremeceu por inteiro; mas Laura, porque não me procurou na chefatura, indaga. Não, você não sabe o que é ser usada, e você também me usou, sumi naquela madrugada porque já estava grávida, você não me assumiria, era casado, como deixar uma mulher honesta por uma vadia, não Moura, não tinha eu este direito. O agente calou-se, fechou os olhos por instantes, estendeu a mão para ela, sentiu-a trêmula, ao abrir os olhos nota que esta está ofegante, chama por seu nome, porém sua cabeça tomba; se desespera. “Laura!” Sem resposta, tomou o pulso, imperceptível. Morreu, exclama incrédulo, esperou vinte cinco anos para morrer, esperou para morrer segurando a mão do único homem que amou. Saiu fechando a porta do passado atrás de si, chorou copiosamente como uma criança perdida de sua mãe, sentia-se mais só do que nunca, blasfemou baixinho, trocou de mal com Deus, descompôs-se. Chamou Matias na chefatura e anunciou a morte e disse que tudo deveria ser colocado em sua conte, sim ele pagaria o funeral. Levantou-se lentamente, mais uma vez olhou para cima, farejou o ar e prometeu à memória de Laura que encontraria os dois meninos. Partiu.
Emanuel ajeita Eduardo na cama, deixou o hospital, praticamente recuperado, mas ainda inspira cuidados, ajudado por Mariana, que chegara minutos depois, Eduardo agradece estar vivo, mas se indigna... Quem faria tal loucura e por que o faria? Pensa em muitas hipóteses, mas não encontra resposta, mulher não poderia ser mesmo porque já fora dito que era um rapaz, tivera muitos amigos e alguns desafetos, era uma figura ambígua, tivera relacionamentos secretos, tanto com moças quanto rapazes, mas que não vazara nunca, jamais fora pego ou flagrado em atitude suspeita, não aparentava trejeitos, apesar da delicadeza das expressões ou gestos, mas isso não era prova definitiva para tanto. Emanuel fora sempre a pessoa mais próxima, que como um anjo sempre zelara por ele, Mariana, amiga nova que conhecera em um dos espetáculos, era uma atriz iniciante que se aproximara com a vontade de aprender, tinha por volta de vinte e dois anos, bonita, mas não chamava sua atenção, mesmo quando Emanuel dissera que ela o provocava, não, imaginação sua ela só quer aprender a representar. Emanuel preparou para ele um caldo verde, leve como a prescrição médica, lembrou-se de Alexandre, o vizinho estranho do apartamento do lado, sentiu-se incomodado.
Pareceu ter ouvido barulho no apartamento ao lado, como se alguém removesse algo, agora sozinho sentia-se bem, lembrou que se dirigia ao teatro no momento em que fora atingido, pensou em algumas pessoas, nenhuma com perfil de assassino, nenhuma com motivo para o gesto, Pierre, aquele francês simples, uma pessoa alegre, dividiram uma apartamento por dezoito meses, até seu retorno ao Brasil, sentia saudade, trocavam mensagens vez ou outra, prometera vir para cá, mas nunca se concretizara, passou; lembranças são como nuvens vêm e vão ao sabor do vento, passara momentos felizes, mas teve muita contrariedade, é a vida, sente calor, descobre-se; agora quase nu livra-se do calor forte daquela tarde, ouve cair algo, como uma cadeira, parece vir do apartamento do lado, chama Emanuel, sem resposta; Mariana já havia se ido há algum tempo, estranho barulho, Emanuel, com seu ar de mistério também deveria ter partido, estava só; lembrou-se do vulto da mulher de preto no hospital, ninguém conseguiu desvendar o mistério, não deixara qualquer vestígio, não conseguira ver o rosto da esguia figura. Adormeceu. Três dias depois do ocorrido Moura volta para seu trabalho na chefatura, silencioso e decido assume seu posto e ordena a Matias a fazer uma diligência na casa de Eduardo, depois Emanuel e Alexandre, enfim queria uma varredura no caso do Metrô, a imprensa até já se esquecera do fato e já não abriam mais manchetes, Matias obedece, ele volta-se mais uma vez para seu café pensando que tivera dois filhos com Laura e nunca soubera; imperdoável, não a culpava, mas a si, sua omissão, sua irresponsabilidade, agora Laura é morta, quer resgatar os filhos, conhecê-los, olhá-los nos olhos e dizer que é seu pai biológico, enfrentar a indiferença e revolta, mas estava decidido. Vestiu o velho sobretudo, arrumou o antigo panamá na cabeça e partiu. Sem destino, simplesmente farejou o ar. Partiu. Agora recuperado, depois de longos dez dias de repouso Eduardo volta às atividades, com pequenas dores, mas já era hora de voltar, recebido com festa, por seus amigos, Mariana se desmancha em gentilezas, fez um bolo com seu retrato, sentia-se em casa, evitara a estação do metrô, fora de carro com Emanuel, comentara que ouvira barulho no apartamento ao lado, Emanuel desconversou, implicância sua com o vizinho. Alexandre que detestava a vizinhança mantinha aquele apartamento vizinho de Eduardo, apurou Matias, teve um problema no banco anterior em que trabalhara por desvio de dinheiro, estivera metido num esquema de lavagem de dinheiro, respondia um inquérito por isso, era sempre irritadiço, pouco se relacionava com a esposa, casara para parecer ser um homem responsável, traíra a mulher com uma colega de serviço, sua família mantinha um segredo que o incomodava, sua mãe nunca respondera com precisão as perguntas sobre seu nascimento, dos quatro filhos ele era o mais moreno, cabelos negros e olhos castanhos bem escuros, de um biotipo diferente dos demais, isso sempre o intrigara, pediu que fizessem um exame de paternidade, negaram; discutira com o pai, ofendera os irmãos, na adolescência se envolvera com maus elementos por conta dessa revolta, ostentava uma vida de classe média alta, não ganhava mal, mas tinha uma necessidade incrível de aparecer, ser notado, faria qualquer coisa para estar no foco das atenções, desconfiava-se que tivera uma filha fora do casamento, fruto de um relacionamento furtivo. Internava-se por horas perdidas naquele apartamento quase vazio, nunca se soube o que lá fazia, jamais foi visto entrando com alguém, logo não o mantinha para encontros, jamais dormiu lá, a não ser a noite em que Eduardo chegara do hospital e ficara só. Emanuel viera do nordeste, Salvador, era amigo de ambos, mas nunca fora visto entrando naquele apartamento, era um misto de faz tudo, já havia tentado ser ator, fizera pontas em novelas, pontas em peças; trabalhara como bancário no banco de Alexandre, aliás, fora lá que iniciaram este relacionamento de amizade; solteiro, cuidava com carinho extremado de Eduardo, Alexandre até fizera comentários maldosos, Emanuel ruboresceu, mas não contestou, desconversou. Verdade que sempre fora prestativo, ajudava os amigos indistintamente, a guia branca de Oxalá no pescoço indicava isso, era adepto do candomblé, deixara seu Ylê para vir para tentar a vida por aqui, foi um dos primeiros a visitar Eduardo no hospital, vira certa tarde aquela mulher estranha descer as escadarias e ganhar a porta, seguira por instantes, mas a perdeu de vista na multidão, intriga-se com o fato de como uma mulher vestida com aquela capa sumira de sua vista, recorrera aos búzios para desvendar o mistério, mas nunca revelou o que descobrira, mantinha-se discreto como manda a regra de sua religião afro. Matias fizera um relatório completo para Moura, pensou não ter deixado detalhe passar ao largo da sua visão aguçada, pois sabia que o chefe era exigente e minucioso, só não conseguira entrar no apartamento de Alexandre, mas pediria um mandado na chefatura para poder vistoriá-lo. Enquanto isto Moura voltou à casa de Laura, tudo ali cheirava passado, tinha mofo nas lembranças, soturna e sombria a casa parecia sufocá-lo, passou a mão sobre os móveis envelhecidos pelo tempo, abriu uma gaveta da cômoda, retirou de lá uns papeis amarelados e descobriu que Laura tivera os gêmeos na Santa Casa e por lá mesmo os deixara na roda dos enjeitados para adoção, descobriu também que um fora adotado por uma família do interior e outro ficara na capital mesmo, até certo ponto da vida ela os acompanhara a distância, mas a bebida e o desregro da vida a afastou deles, descobriu que ela escrevera muitas cartas que nunca lhe foram entregues e nelas confessava seu amor e sua degradação como ser humano, seus olhos lacrimejaram, sentiu-se o pior dos humanos, mas agora nada podia fazer. Vasculhou o passado como quem garimpa diamante e buscou as famílias que adotaram seus filhos, as encontrou e percebeu que o melhor seria não incomodá-los, saberia de tudo por investigação indireta. Naquela manhã resolvera que ele mesmo faria a diligência, poria fim ao caso do metrô que desconfiava tinha a ver com o seu passado, achava estranha a semelhança física entre Alexandre e Eduardo, a mesma idade, um era o reflexo do outro, queria afastar esta dúvida, em suas pesquisas tudo se encaixava e a seta do destino apontava aquela direção. Era uma tarde de sol morno, de brisa fria, era uma tarde em que Eduardo ensaiava em seu apartamento passos de uma dança para seu próximo musical, nunca se vestia para ensaiar em casa, não usava o colant costumeiro, preferia ficar de cuecas para melhor elasticidade, ouvia Bach para se acalmar deitado em sua ampla cama, um barulho o interrompe, assusta-se; viera do apartamento ao lado, um som abafado de quem cai sobre panos ecoou dentro do seu armário embutido, levantou-se, abriu o armário, parecia tudo em ordem, voltou para seu leito, cochilou. Moura caminha lento por entre o arvoredo da avenida, metido no seu sobretudo. Embaixo do seu panamá é um só pensamento, fixo, determinado na busca dos filhos, na busca do autor do atentado, mais decidido do que os que apuraram o tiro da Rua Toneleiros, pensava no quebra-cabeça em que se transformara sua vida, justo ele cansado de resolver o insolúvel era ao mesmo tempo procurador e procurado, procurado do destino implacável, tirou do fundo dos seus pensamentos: “Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.” Seu jeito de homem rude, calejado pelos anos de polícia, não deixava transparecer que era um homem culto, sacara esta frase de Friedrich Nietzsche do fundo de suas noites em claro lendo e filosofando sobre a vida e os homens. Moura era por si só um poço de estranheza, um desses buracos em que nunca se chega ao fim, caminha, olha os prédios, as antenas de televisão da avenida Central, dobrou a esquina e adentrou a Rua da Consolidação, caminhou mais quinhentos metros e estava diante do prédio de Eduardo, começaria por ali, enfrentaria a primeira das duas supostas feras, pensou como seria recebida a notícia de que era seu suposto filho perdido, parou; e farejou no mais tradicional estilo perdigueiro. Eduardo inicia seu treino, dançava Debussy, saltava como uma garça ao iniciar um voo, o som o inebriava, deixava o chão e viajava como um meteorito no espaço sem gravidade, gestos largos, delicados. Naquele dia Alexandre não fora visto, Emanuel ligara para ele, mas caiu na caixa postal, não fora visto no trabalho, Emanuel queria conversar com ele sobre um assunto pessoal da conta bancária, não estivera também na academia, que, se diga, raramente frequentava, enfim, não fora visto. Mariana marcara com Eduardo para dançarem juntos, ela faria par com ele na dança da peça, ficara esfuziante, pois nutria certa atração por ele, achava-o bonito.
Ali, diante do edifício, parado, olhando permanecia Moura, só como sempre viveu, fechado em si como uma ostra, decidiu entrar. Alexandre, que não fora visto naquele dia estava em seu apartamento, passara a noite ali, só. Figura estranha, irritadiço, mas determinado em seus propósitos, admirava Eduardo como artista, cometera uma invasão de privacidade ao criar uma parede falsa em seu quarto que coincidia com o fundo do closet do vizinho e por ali o observava em seu repouso, em sua intimidade, admirava-o, via sua própria realização, sempre quisera ter habilidades artísticas, mas não as tinha e se via em Eduardo, em cada gesto, em cada atitude, invejava seu corpo esguio, sua pele amorenada, seus cabelos negros e olhos escuros, era seu reflexo, mas era visto com carinho por amigos e colegas, o que não era bem o caso de Alexandre, nada simpático e profundamente arrogante, Eduardo era leve, suave, de uma tez delicada, expressão verdadeira, única, sabia ser ele uma pessoa aberta, sem preconceitos, livre como os saltos que dava no ar. Naquele dia ficara em seu apartamento na observação do vizinho, olhando-o pela sua passagem secreta que este sequer imaginava. A cada passo novo extasiava-se, enchia-se de ódio ao mesmo tempo, a inveja o corroía, a adrenalina o envenenava enquanto Eduardo bailava leve pelo quarto distraído, com os olhos embotados de raiva e lágrimas, arromba a porta do closet e ataca descontrolado Eduardo assustado, empurra-o junto à ampla janela do apartamento de construção antiga, aos gritos de odeio você, odeio sua dança, seu corpo perfeito, sua fala, Eduardo assustado nada entende. Moura na calçada decide entrar, sem elevador, segue pela escadaria escura do velho prédio, teria que subir cinco andares dos sete que compunham o edifício, para chegar ao apartamento de Alexandre, ao chegar ao quarto andar ouviu gritos de raiva e ódio que ecoavam pelos corredores, a velha pratica policial desperta nele o perdigueiro que andava meio encolhido, acelerou o passo, chega ao apartamento de Alexandre, a porta fechada, bate, não nota a companhia, bate outra vez, os gritos agora pedem socorro, força a maçaneta e percebe a porta destrancada, abre-a, adentra o espaço da sala, os ecos parecem vir do quarto, dirige-se para ele e percebe a parede aberta e os alaridos mais fortes, quando se prepara para entrar ouve um estampido, seco, contundente, um tiro. Correu, atravessa a passagem secreta e se depara com um rapaz de cuecas estarrecido, colado junto á janela e outro totalmente vestido, mas com a cabeça mergulhada numa poça de sangue, a bala atingira em cheio sua têmpora, correu em socorro, tomou-o nos baraços, gritou por seu nome, tomou a pulsação, expirou forte e desanimado, levantou o olhar para Eduardo e disse com pesar: "morto, está morto!” Deixou cair um par de lágrimas, pela terceira vez chorava sentido em tão pouco espaço de tempo, apertou a cabeça de Alexandre junto ao peito deixando-as cair em seu rosto inerte, voltou seu olhara para Eduardo ainda estarrecido, assustado, trêmulo, vocês eram amantes? Perguntou sem rodeios. Não, respondeu Eduardo, depois de uma longa pausa, e não tenho a menor ideia de quem atirou nele, experiente, Moura não desconfiava do rapaz, jamais alguém em desvantagem e nitidamente dominado pela vítima teria angulação para um tiro como aquele, descartou a possibilidade. Percebeu abrir a porta da sala do apartamento de Eduardo, era Emanuel que chegava para observar o treinamento com Mariana, por isso deixara a porta destrancada, afinal Emanuel tinha acesso liberado, chamou por Eduardo sem que obtivesse resposta, chamou outra vez já a caminho do quarto, parou pasmo na porta ao se deparar com a cena, correu para Eduardo abraçando-o e chorando a morte de Alexandre, como isto aconteceu? Indagou olhando para aquele senhor que continuava ali inerte, sem palavras, porém seu pensamento girava com a rapidez dos tufões, nem desvendara o caso do metrô e outro tiro já o intrigava; assim não se aposentaria nunca, pior era ter o filho que ele, já sabia não era mais suposto, havia comprovado pelos documentos que pesquisara e checara na Santa Casa, na casa de Laura e nos cartórios, sabia que Alexandre era um dos gêmeos que buscava na imensidão da cidade. Emanuel está estático, sem palavras, afinal perdera um amigo, como falar para sua esposa; ainda atônito pergunta para Eduardo: “Por que você fez isso? Não precisava matar e estragar sua vida, eu sei que ele te odiava, mas era uma mera questão de ignorar, Eduardo!” “Eu não o matei; como na plataforma do Metrô um tiro surgiu do nada e atingiu em cheio a cabeça do Alexandre.” Disse Eduardo em resposta a Emanuel. O tiro pareceu vir da passagem no closet, disse já um pouco menos tenso, Emanuel dirige-se a fenda e a ultrapassa como um raio e encontra sobre a cama uma capa preta como aquela que que fora descrita pelos médico no hospital, pensou ser Alexandre a figura misteriosa, mas logo descartou a possibilidade, disseram que era uma mulher, Alexandre jamais se vestira de mulher para visitar o enfermo, era masculino demais no porte, desconfiariam, não; reluta em busca de uma resposta rápida, lembrou ter visto Mariana deixar o prédio quando chegava, parecia estar apressada, afobada, lembrou que não respondeu sua indagação sobre o ensaio, sem desconfiar do que encontraria no apartamento de Eduardo deixou-a ir, pensava só, nada disse a Eduardo ou a Moura. Sentou-se na cama para melhor pensar, sabia onde ela morava, pensou em ir até lá, recuou da ideia, levantou-se, iniciou o passo e sentiu algo sob os pés, era um brinco um brinco de pressão, uma bijuteria fina dourada adornada com pedras vermelhas brilhantes. Teria Alexandre recebido uma mulher em seu apartamento? Pensou, mas descartou a ideia, devido o ocorrido, pensou na engenharia criada por Alexandre só para observar o vizinho, isso era ideia fixa, não acreditava em outra possibilidade. Chegou a aventar o envolvimento amoroso entre eles, mas deixou de lado, não porque fosse impossível, mas porque sempre nutrira um sentimento secreto pelos dois, chegou a confessar ao seu interior, mais pela rispidez de Alexandre do que pela leveza de Eduardo, deixou que uma lágrima rolasse sem rumo pelo morto e outra pelo agredido, deixou que a ideia se evanescesse. Agora era hora de outras atitudes, buscar o assassino. Moura pede a Matias que venha ao seu encontro e ordena uma varredura no entorno do prédio para ver se encontrava indícios do crime, Emanuel entrou e disse que não era preciso, pois ele sabia quem fora, e para surpresa de todos o assassino voltou à cena do crime, em pranto copioso Mariana adentra o quarto e se entrega às algemas de Matias, fora ela quem desferira o tiro para salvar Eduardo, de quem confessa ser apaixonada, das garras de Alexandre, ela também vira naquele dia Alexandre se aproximar de Eduardo na plataforma do metrô e fazer menção de que o empurraria para os trilhos na hora em que o trem estacionasse na plataforma e tudo não passaria de um acidente, não teve dúvida, sacou da arma que sempre trazia e atirou, mas errou o alvo e atingiu Eduardo, que a tudo ouviu estarrecido, Moura olhou para Eduardo e teve a certeza de que ali estavam seus dois filhos gêmeos, quis contar para Eduardo a verdade, mas recuou, de que valeria agora esta verdade pela metade, gostaria de ter os dois em seu abraço, queria dizer aos dois que era o pai biológico deles, mesmo que eles o rejeitasse, mas teria cumprido seu papel de pai, teria assumido a ambos, mesmo que tardiamente, daí em diante, seria com eles, não passariam a vida sem saber quem era seu genitor. Ordenou que encaminhasse Mariana à delegacia e deu o caso do metrô por encerrado. Emanuel não precisou perguntar, concluiu com certeza de que a mulher do hospital era Mariana, Moura já sabia, só não tinha certeza absoluta, por isso se calara. Emanuel abraçou Eduardo com muito carinho enquanto os homens do rabecão recolhiam o corpo de Alexandre para encaminhá-lo ao I.M.L., tratou logo de limpar o sangue do chão, enquanto Eduardo tentava entender a situação ainda em estado de choque. Oito dias depois Emanuel leva Eduardo para uma viagem e se restabelecer do impacto, partiram rumo ao nordeste, quiseram passar na chefatura para despedirem-se de Moura, que mais uma vez tentou contar a verdade, mas as palavras não saíram, deu um abraço apertado e demorado em Eduardo, outro também em Emanuel, viu ainda, quando já na calçada, Emanuel passou o braço sobre o ombro de Eduardo e caminharam juntos rumo ao carro, pensou com os seus botões: “sejam felizes.”
Aquela manhã era fria, uma fina garoa caía como se fosse um choro lento, por volta das dez horas o caixão baixava sepultura, uma despedida solene para quem viveu solenemente, tiros para chão, Matias rendeu sua última homenagem lançando uma rosa vermelha sobre o caixão, levantou a cabeça, enxugou as lágrimas, últimas e teimosas, farejou o ar e disse: “descanse em paz chefe!”.

Moura morrera numa noite após o fato da Rua da Consolidação, morrera dormindo, morrera dentro do silêncio que sempre norteou sua vida, toda a chefatura sentiu muito a partida inesperada, não só se aposentava da polícia, mas também da vida que só lhe pregou peças. De volta para a chefatura de polícia Matias pensava no que tinha sido Moura na sua vida, acelerou a viatura quando pelo rádio ouviu um alerta de que havia um incidente na estação de metrô da Avenida Central, alguém disparara da escadaria e tinha um ferido, Matias ligou a sirene e irrompeu sobre a multidão que se aglomerava, olhou para o alto e disse: “agora é comigo chefe!” Fechou seu diário e assinou: Matias.

SÉRGIO SOUZA