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19 de nov. de 2014

ABRAÇO DE IRMÃO





Embrenha teus cabelos cor de prata
Na manhã raiada de madeixas negras
Embrenha o eco surdo por teu sorriso cor de anil
Na manhã fria de outono quente
Estende hoje a mão que ontem negaste
Chora sociedade macabra teu nefasto choro de iniquidades
Chama para dentro de si os renegados do banquete
Diz que não existem; que são visões, Ignora teus restos nus nas esquinas,
Renegue tuas meninas, diz que é ilusão.
Embrenha a luz por teus cabelos cor de prata
Na manhã raiada de madeixas negras
E ensurdeça-se com o eco que vem das ruas
Surdo e amordaçado dos esquecidos,
Daqueles que não chamaste irmão;
Que se quer passou pelos pensamentos seus
Os mendigos das consciências
Os renegados filhos de Deus.


SÉRGIO SOUZA

17 de nov. de 2014

QUEM ME DERA


Quem me dera
ter o mundo inteiro
pra poder correr.
Correr sem nunca me cansar,
correr até faltar o ar,
até não sentir mais as pernas;
sentir o sol me banhar,
sair da escuridão das cavernas
e não mais me penar
em angustiante claustrofobia,
e ser para mim a minha companhia,
e ter para mim todo o mundo, todo dia,
o dia todo.
Quem me dera
correr descalço,
pelos campos,
pela areia,
pela neve,
passear leve,
pelas nuvens,
pelo céu,
por algum lugar distante
onde todos tenham asas.
Quem me dera
tornar-me viajante,
largar o peso,
estar-me ileso,
de todas as toneladas,
de todas as palavras
que, sutil e brutalmente,
foram lapidadas.
Quem me dera
despir-me da gravidade
para flutuar,
flutuar em liberdade,
pelo universo,
disperso entre as estrelas.
Abraçar a leveza
e nunca mais soltar,
viajar a lugares
onde se possa voar,
onde o infinito seja o chão,
e o chão não exista;
onde o céu seja o lar.

Quem me dera
correr somente,
esquecer, fugir, sumir,
até não sentir mais a vida.
Apenas sentir
outra vida que não existe,
mas que pode existir.
GUI RODRIGUES

5 de nov. de 2014

COMPOSIÇÃO



Beto abre a vidraça. Ela se remexia tentando romper o trinco, pois o vento batia forte querendo entrar. O sujeito dirigiu-se a ela, e, ao abri-la, viu-se defronte a uma infinidade de majestosos detalhes naturais, e não consegue evitar que seus olhos percorram a paisagem, e suas retinas pousam um tempo por sobre os morros verdes e longínquos. Há cinza no firmamento, na verdade, ele é todo cinza, já que uma nuvem imensa cobre tudo o que nele havia de azul. Somente aonde as vistas não alcançam é que a tinta celeste ainda era azul.
Alguns galhos de trepadeiras intrujonas penetram de fininho. Os ventos já haviam invadido o quarto de Beto, e agora não mais se agitavam com furor, apenas vagavam pelo ambiente, como se inspecionassem minuciosamente o local, querendo tocar até as partes mais sombrias desse quarto. O homem, ainda encantado, deixa que a brisa sopre em seu rosto, e fecha os olhos tranquilo; está melancólico, esse senhor, mas aprazido, pois recebe o beijo divino da Mãe Natureza, que o fascina de maneira tão vertiginosa.
Atrás dele jazia um grande amigo, o seu único amigo: um piano velho e já usado centenas de vezes. Quantas não foram as noites que esse parceiro deitou a cabeça de Beto em seu colo, cantando-lhe cantigas de ninar e lhe acariciando os cabelos, para que o pianista pudesse ter alguma tranquilidade dentro de si, ainda que fosse por míseros e apressados momentos – mas sempre tão intensos. Quantas vezes ele precisou fugir e o instrumento foi o único a lhe oferecer uma porta de saída, quando nefastas e horrendas criaturas da consciência perseguiam carnicentas e famintas esse angustiado homem...
O companheiro musical o saúda, e lhe convida para uma viagem. Beto, com o espírito massageado, sorri satisfeito e agradecido para o amigo, e novamente se volta à janela, aberta para ele como o céu para outras dimensões, deixando que o caos interior se aquietasse por alguns instantes.
Eis que um canto se faz em seu coração. Uma voz sopra na sua alma uma música, como se o Universo inteiro descesse quieto para cantar nos ouvidos desse homem a composição dos céus. Parecia um chamado. Coisa difícil é conter algumas sensações estranhas e maravilhosas que às vezes, tão de repente e fugidias, atravessam como uma espada o espírito, rasgando qualquer angústia que nele pudesse residir. Havia sido isso que ocorrera com Beto, não havia modos de conter a formidável alegria que o acometeu nesse momento; ele flutuou.
Então se volta novamente esse senhor ao piano, que o fita ainda com o convite em valia. Uma força o impele, e automaticamente ele se vai sentando, sem ajeitar o sobretudo que usava e aconchegando-se confortavelmente sobre o banquinho de onde comporia a trilha sonora da viagem de sua alma.
Assim que ele começa, a um leve toque nas teclas do piano, talvez tenha se aberto o céu, pois um impulso o invadiu logo no primeiro tilintar. E dentro dele algo se remexe, algo parece querer sair, se libertar de seu coração para as profundezas daquele quarto solitário. E ele não para, segue com os dedos a tocar, dançando leves pelas teclas do piano. "Oh solidão! Você escuta essa música? Que me importa se escuta?! Componho para mim, é somente meu espírito que pretendo atingir! O céu já me ouve, e isso me basta. A imensidão do firmamento é minha mais majestosa plateia, e eu o escuto perfeitamente, ele me diz o que fazer, eu apenas obedeço aos seus sussurros, que são os comandos do meu coração. O pensamento é como a sereia do mar que cada ser humano carrega no peito, o mar severo e calmo, o mar colérico e gigante, o mar de águas frias e salgadas, que com sua imensidão oceânica esconde a sereia, mas que, mesmo com toda essa grandeza, com toda essa infinitude, não cala o seu canto, e os navegantes exploradores são atraídos, hipnotizados, e não raro se perdem quando deleitados nos prazeres dessa voz interna que convida às mais profundas profundidades do espírito humano. Escute, solidão, o cântico do meu piano, e me deixe mergulhar-me em meu espírito na companhia da donzela dos mares, que me convida à escuridão de águas remotas".
Aquilo que está dentro dele quer cada vez mais sair, e à medida que Beto faz música, essa força parece ganhar força, e tamanho, e dimensões cada vez mais impossíveis de permanecer em seu corpo, até que, fugindo de dentro de si, dançando no ar como uma sereia a nadar pelo oceano, rasgando levemente seu peito, surge uma mulher flutuante, uma bela mulher flutuante. Não que fosse uma sereia propriamente dita, sendo metade peixe metade humana, era toda humana, inclusive, no entanto balançava seu corpo pelos ares como uma perfeita sereia, e por isso tanto se assemelhava a essa criatura mítica.
Ela se coloca acima do piano, e, quase toda nua, apenas com um lençol solto a cobri-la nas partes mais baixas, abraçando desde o tornozelo ao diafragma, deixando à mostra as mamas, divaga com prazer, como quem se deleita nos sopros da música. Mais parecia um espectro, pois de tão pálida, branca, quase transparente, podia-se ver, ainda que imperfeitamente, por através dela. As linhas de sua silhueta são esfumaçadas, e desses traços um vapor se desvanecia enquanto a mulher flutuava num delírio sereno. Parecia ser impossível senti-la com as mãos.
Beto está com os olhos fora de órbita. Não crê nas mentiras que as retinas podem dizer, tem medo, paulatinamente é hipnotizado. Coça as vistas, sacode a cabeça, balançando os cabelos ondulados; engole em seco, seu coração se acelera, e não percebe que mesmo assustado suas mãos não cessam a melodia. A figura misteriosa abre os olhos, e se coloca flutuante à frente do pianista. Ela o olha bem de perto, quase o toca, seus narizes estão a menos de um milímetro um do outro, e de repente a formosa criatura fez sorrir os seus lábios, incentivando Beto a não cessar jamais a música. O homem, atônito, embora tranquilo, apenas fecha os olhos, e não evita que pelo seu rosto triste escorra uma lágrima solitária, calada, que vai despencar de sua face ao seu colo.

Então ele abaixa a cabeça, guaia, solta o espírito, enquanto, no desempenhar da triste melodia que seus dedos executavam, a sereia dos pensamentos dança por sobre o seu único amigo, o piano.

GUI RODRIGUES

I
O som do piano é a alma do pianista
Esse alquimista das notas que faz da melodia
Seu meio dia, sua meia noite
Da vida sinfonia.
Evoluí numa mágica interna de vontades
Numa mistura surda de necessidades
Faz rima com o volátil
Sonetos com o tátil.
É sonho, é mistério, é ilusão
Sem corpo, é só coração
Suavidade melódica.
Ácido e suave, amor e ódio de casaca
Luz e trevas, desejo e desprezo atado
Composição de pé quebrado.
 II
Eu piano nos versos
Enquanto tu pianas na prosa
E nesse pianarmos,
Lançamos sons e ecos no ar,
Numa vontade louca e Beethoviana
Para ensurdecer o mundo,
E bailar com a Lua senhora e vadia
Fazendo chorar a noite com saudade do dia
Revirando madrugada sozinha na cama
Enquanto vagueia os dedos cegos no teclado
Ora preto, ora preto, numa alternância frenética
Da dor e do deleite, do negar e do sentir
No divino direito de pianar.

SÉRGIO SOUZA

EU VI O TEMPO! / EU NÃO VI O TEMPO!


Eu vi o Tempo
Sozinho na areia, era um rapaz, um menino
Com a carga definitiva do destino.
Eu vi o Tempo
Pensando parado com os olhos azuis
Perpetuados no azul das águas do mar.
Eu vi o Tempo
Com as marcas da alegria e da tristeza
Marcadas em teu corpo franzino de homem-menino.
Eu vi o Tempo
Fumando poesia, e um relógio na algibeira
Era dia, talvez noite, falando na voz do vento.
Eu vi o Tempo
Olhando o infinito finito da eternidade
Lembrando um tempo que o Tempo saudade não viveu.
Eu vi o Tempo
Passando a limpo na areia da praia
O texto verdade de cada tempo.
Eu vi o Tempo
Com todas as nossas feridas marcadas em si
Como medalhões de glória ou enlevo de sentir profundo.
Eu vi o Tempo
Com todo o carma do mundo
Na fumaça do charuto num tragar bem fundo.
Eu vi o Tempo
De longa barba, velho como o Tempo
Novo como o iniciar dos tempos.
Eu vi o Tempo
Falando sozinho na brisa do ar
Conjugando o verbo criar.
Eu vi o Tempo
Na sombra do coqueiro da pedra
Sob as folhas do Baobá.
Eu vi o Tempo
Senhor do passado, compreendedor do passado,
Imaginador do futuro, sonhando na voz da maré.
Eu vi o Tempo
Inspiração,  negação e sentido
E lembrei do meu tempo com lança ferido.
Eu hoje vi o Tempo
Preso e livre no azul infinito do olhar
Caminhando sobre as águas das pedras do mar.
Eu vi o Tempo!

SERGIO SOUZA

Eu não vi o Tempo!
Não sei quando foi
que o passado virou presente,
mas sei que,
de alguma forma,
aquilo que já é ausente.
nunca se foi
Eu não vi o Tempo passar,
Como sempre, eu não vi o Tempo.
ele passou.
e bem diante dos meus olhos sensíveis
Passou pra ser passado.
Quantas nobres crueldades!
Oh! Como minhas barbas cresceram!
Tempo, eu dormi todo esse tempo?
Eu não vi o Tempo;
eu vi água, mar,
areia, pessoas, céu, lua, mas nada de Tempo.
Nada dá tempo,
e tudo parece estar fora do tempo...
pontos de interrogação.
É que os ponteiros apontam
Mas as questões às vezes se afirmam.
Eu dormia
quando meu Tempo chegou.
de perto do Baobá,
Ele veio de longe,
flutuando, como um menino,
sorriu-me e disse:
pelos ventos do destino;
chacoalhou-me,
"Vamos, que eu sou o Futuro,
– que não se vê, que somente se sente – me presenteou:
e já é tempo de transformar!".
E o Tempo o Futuro, agora,
mora no meu presente.
E tudo passa.
Mas no momento
eu não enxergo nada...

GUI RODRIGUES