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29 de set. de 2014

O PALHAÇO DO METRÔ

   


          Céu limpo e azul. Um dia quente fazendo revolução diante dos demais dias frios daquela semana.          
          O sol vinha banhar com sua luz a pele das pessoas absortas nas delícias daquele domingo sereno e agradável.
        Pusemo-nos, eu e um companheiro, dentro do vagão do metrô, enquanto conversávamos assuntos banais. Rumávamos ao centro da cidade, pois lá haveria um evento ao qual meu amigo encabeçava. É engraçado que nos meios de transporte vemos pessoas dos mais variados tipos: algumas mais extravagantes, com cabelos de todos os modos, roupas, brincos, tatuagens; outras bem discretas, uma roupinha básica e um cabelo normalzinho já lhes basta; mas todas em suas plenas singularidades.
      "Próxima estação...". Aquela voz automática indicava a estação seguinte e qual o lado que deveriam desembarcar os usuários que desejassem descer. Até aí normal; o assunto seguia, pessoas entravam e saíam, e nós aguardávamos nossa vez de desembarcar.
       Foi quando pôs-se no vagão um rapaz: alto, forte, muito forte, com uns braços largos como minha cintura, uma camiseta com as linhas quase rasgando por causa daquele peito demasiado musculoso, ombros largos, fazendo sintonia com o queixo exibicionista da masculinidade; enfim, um verdadeiro Hércules, com seus quase 1,90 de altura e uma idade que orbitava os trinta. Com o sobrolho enrugado, exibia tanto expressão de austeridade quanto orgulho de seu físico intimidador. Um valentão bem estereotipado, daqueles que se vê em filmes americanos.
        Batíamos ainda um papo, eu e meu companheiro, e embora percebêssemos que a celebridade do Olimpo, com sua feição de homem mal, encarava a todas as pessoas – distratando-as com o olhar, buscando amedrontá-las e às vezes conseguindo –, tentamos nos concentrar em nosso assunto, afinal há muitos boçais por aí.
        Levantou-se uma senhora, e o Hércules, com todo o seu tamanho, limitou-se a fitá-la quando ela lhe disse, baixinho e educadamente, "com licença, meu filho", pois era nesta estação que precisava descer. De braços cruzados, o animal exibia seus bíceps e antebraços visivelmente forçados para parecerem ainda maiores, forçando também a mandíbula, ornamentando seu rosto de ogro, enquanto a senhora se esforçava para driblar aqueles quase dois metros de pura imbecilidade. Não fosse a simpatia e a baixa estatura da senhora, acompanhadas de um corpo frágil, bem magrinho, decerto ela não desceria. Nossa celebridade, com olhar maldoso, ainda fitava da cabeça aos pés a boa senhora que já subia as escadas da estação e talvez já tivesse esquecido do ocorrido. Mas a besta musculosa não: ele era mal, bem mal, e por isso devia mostrar ao mundo, o quanto pudesse, a sua cara feia, desenhando em seu rosto expressões de um cão sarnento e raivoso, e doando-as às pessoas que cruzassem seu caminho de fera animalesca.
      Pois bem, tentamos ainda ignorar aquilo que se encontrava em nosso vagão, mas ao passo que aquela figura do ridículo olhava feio para todos ali – juro que tentei, suguei até o último das minhas energias em esforços fracassados – foi difícil conter: nascia fervilhando um riso do mais recôndito da minha alma, um riso que subiu depressa e me escapou no formato das mais sinceras gargalhadas. As pessoas não entenderam, pois é óbvio que um gargalhar súbito como o que me fugira, chamara a atenção dos usuários ali e principalmente do meu companheiro. Eu ria mesmo, com gosto, e não somente ria como também apontava a causa de tanta riso: a cara feia do Hércules contemporâneo. Meu amigo foi o primeiro contagiado, e lhe escapou também, tão rápido, o mais intenso gargalhar. O paspalho valentão, musculoso como um cavalo, enuveceu mais ainda o rosto, lançando a nós com os olhos, raios que provavelmente seu papai Zeus o ensinara a lançar. Seu olhar transbordava raiva, e em sua cabeça ele provavelmente se perguntava, indignado, como estes rapazes ousavam zombar dele, logo dele, uma figura tão temida, capaz de amedrontar até o mais intrépido dos homens. Não importava: quanto mais cara feia, maior o desejo de rir. No entanto, mesclada à raiva, cada vez mais seu rosto enorme demonstrava um vermelhidão, tingindo as maçãs da bochecha com um vermelho tão vermelho quanto o vermelho pode ser, enrubescendo levemente e não mais conseguindo se concentrar em sua raiva. Então o boçal encontrou o ápice da sua vergonha, pois todos no vagão seguiram nosso exemplo, entregando-se paulatinamente ao devaneio do riso a que nos submetíamos eu e meu amigo; começou com risadinhas baixas, tímidas, e logo todo o vagão se transformou numa orquestra, num coral de risos, às vezes uníssonos, às vezes desafinado, uma vez que toda a gente, com uma mão na barriga e a outra apontando o rosto do Hércules, riam como pessoas insanas, riam tanto que não continham o peso do próprio corpo, perdendo a força, indo, autômatos, deitar no chão; rolavam, enquanto lágrimas de riso inundavam seus rostos tão contentes por terem um objeto que os fizesse rir como nunca antes riram. O bobo da corte, naquele momento, creio, tendo um revólver, explodiria seus próprios miolos, uma vez que nada seria mais terrível do que mais um segundo naquele vagão atormentador onde todos riam dele sem piedade.
      Agnóstico que sou, creio às vezes em brincadeiras do destino, e este, zombeteiro assumido que não perde a chance de troçar quando tem oportunidade, também foi contagiado: mandou-nos diretamente do Paraíso uma falha no trem à frente, atrasando a chegada da próxima estação, na qual, sendo ela ou não seu destino inicial, nosso palhacinho desembarcaria, tamanha a vergonha que o acometia. Seu desespero se manifestava em cada célula daqueles músculos imensos, o rosto de menino mal de outrora desaparecera, dando espaço agora a uma expressão de "estou implorando, parem!", com os olhos substituindo os raios que lançara por tempestade de lágrimas . Mas nós não parávamos, que nos importava o desalento dele? Ríamos mesmo daquele grosseirão, e com vontade, eu rolava no chão, socando minha própria barriga tentando aliviar o diafragma enrijecido que queimava devido meu profundo gargalhar. A besta caiu de joelhos, tremelicando-se por inteiro, derramando lágrimas por motivos tão diferentes dos nossos. Escondia com as mãos o rosto, desejava sumir, ser abduzido, teletransportado, morrer.
      Engatinhou, e agora quadrúpede, fez jus à aparência, tentando desviar dos indicadores apontados em seu rosto lacrimoso. Fugia e berrava como um porco no abate, mas seus gritos eram fracos diante de tanto riso, e ninguém escutava nada, apenas riam daquele comediante tão hábil e talentoso em sua arte de fazer rir. Chegou sufocando até o fim do vagão, e, encolhido no canto, tapou os ouvidos com uma força que quase esmagou a própria cabeça: talvez fosse esse seu desejo. Parecia uma criaturinha impotente, pequenina, uma formiguinha indefesa diante da iminência da morte transfigurada em sola de sapato.
      Todos se aproximaram do brutamontes para rir mais forte e mais de perto. Todos queriam ver o quanto mais próximo pudessem o humilhado comediante, que trazia em sua face as cores da piada mais engraçada do infinito universo.
      Mas, depois de tanto riso – creio que todos ali nunca riram nem viriam a rir novamente como riram naquele domingo ensolarado –, a besta passou a deixar de ser besta, e, já se resignando, secou as lágrimas da vergonha, e ainda parcialmente lacrimoso, um sorriso começou a nascer em seus lábios. Como conosco ocorrera, gradativamente, o espírito risonho fermentava em seu interior. Não mais escondia o rosto, fitava-nos agora com outro olhar, o olhar de alguém que caíra em si. Tão mais cedo quanto esperávamos, o homem passou a rir como ríamos dele, dizendo com voz entrecortada pela gargalhada: "Ora, aonde eu estava com a cabeça?! Tolo que fui!", e desabava em risadas sinceras. Nós ríamos ainda, ríamos todos juntos, agora, o mais contagioso dos risos, e quando parecíamos ter contido o riso numa pausa, contemplávamos uns aos outros, rindo novamente e com mais força tudo o quanto antes havíamos rido; os olhos umedecidos ferviam. O rapaz, agora curado, ainda gargalhando, pôs-se a levantar, e nós pegamos em seu braço e o ajudamos a fazê-lo. Ficamos ainda com aquele riso por muito tempo entalado na garganta, pois era muita gargalhada para sair de uma só vez; algumas, inclusive, escapavam guturais.
       O trem voltara a andar, todos se levantaram, secaram suas lágrimas, e voltaram à Terra. Algumas risadinhas ainda estavam flutuando vivas no ar, e o homem já suspirava sereno, parecia leve, bem mais leve; também parecia agora mais gente do que animal. Chegando na próxima estação, ele respirou fundo, fitou-nos a todos, dessa vez ternamente, e, acenando, da sua boca escapou: "Obrigado, pessoal, tenham um bom dia". Sorrimos para ele, cada um respondeu a sua maneira, mas o que todos queriam lhe dizer era: "Fique em paz, companheiro. Tenha um bom dia".
   
  Ele foi embora, e, recompostos do riso, nós ficamos, eu e meu amigo, aguardando nossa vez de desembarcar.


GUI RODRIGUES

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