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30 de set. de 2014

UM TIRO NO METRÔ



O carro policial irrompe aos berros de sirene pela Avenida Central congestionada, elegante e espremida entre prédios imponentes e sem cerimônias sobe na calçada e Moura, um agente policial, abre caminho dentre os curiosos que se aglomeram na porta da estação do metrô, descendo as escadarias com rapidez que não combinam com seus anos de idade, segundado por Matias, um jovem que ainda estagia na policia; na plataforma lá estava um corpo banhado em sangue vitima de um tiro certeiro e único disparado por outro rapaz, que segundo testemunhas era muito parecido com a vitima, alguns chegavam a afirmar que poderia até ser um “auto tiro”. Não tarda chegarem os fotógrafos dos jornais e câmeras das emissoras de televisão, Matias toma o pulso do atingido e declara que ainda existe um fio de vida, Moura aciona, pelo telefone celular, uma ambulância, que tal como a polícia rasga a Avenida Central com a rapidez de um raio, Moura entrega a ação aos paramédicos que com todo cuidado preparam a vítima para o transporte emergencial. Passado o instante primeiro fica a dúvida, quem teria desferido o tiro neste rapaz, que Matias identificara por sua identidade chamar-se Eduardo Novaes e ter 25 anos, o que de tão grave fez este moço para ser tão brutalmente alvejado diante de todos numa estação do metrô? Essa era dúvida dos atônitos que presenciaram o fato. Após os trabalhos de praxe para averiguações e investigações, Moura interroga o chefe da estação que menciona outro rapaz, praticamente da mesma idade que desaparecera na multidão subindo a escada rolante na contramão, afirmara ainda que as aparências eram semelhantes, ambos, vítima e agressor possuíam cabelos pretos lisos, pele morena clara, trajando camisa branca e calças jeans, um detalhe interessante, ambos trajavam roupas semelhantes, a diferença estava na camiseta branca com estampa de uma banda internacional, porém de fundo branco; hoje, meu caro senhor Lauro, diz o agente Carlos Moura, as pessoas se vestem todas iguais, parece que saíram todos da mesma fábrica ou compraram na mesma loja; acho isso uma falta de personalidade, está todo mundo com a mesma cara. No caminho de volta para a chefatura de polícia o silêncio predomina dentro da viatura, ambos os agentes conversam com suas dúvidas, até que Matias quebra este silêncio perguntando para Moura, por qual motivo alguém cometeria um ato impensado desses colocando em risco a vida de tanta gente, a que este praticamente balbucia uma resposta inaudível fazendo com que Matias se recolha ao seu próprio silêncio. A ambulância chega ao pátio do hospital de clínicas, que não era longe do local do fato, médicos avisados já a esperava para uma intervenção para extração da bala, que mais tarde se soube alojara-se no pulmão direito e passara a milímetros do coração. Eduardo agora era conduzido para a U.T.I. em estado grave inspirando todo cuidado disponível. Já na chefatura Moura adentra sua sala dirigindo-se à mesa do café, tomou-o de um único gole, acendeu seu cigarro, companheiro de todas as horas, acomodou-se na cadeira, soltou um tufo de fumaça mantendo seu semblante fechado, com ar de indignação, Matias sentado observava as ações do chefe, Matias daria a vida para saber o que ia pela cabeça grisalha de Moura, que estava a um dia da sua aposentadoria depois de quarenta anos de serviços prestados, tantos plantões, muitas noites de pizzas frias, de casos insondáveis chegava ao fim, quando de repente surge mais um enigma na sua frente: um insondável tiro na estação do metrô. Sem dirigir palavras apanha seu sobretudo e seu inseparável chapéu panamá e deixa a chefatura em direção ao pátio onde estacionara seu velho carro popular dos anos 60, deixando Matias confuso e curioso sentado em sua mesa de estagiário. No caminho de sua casa, na zona leste da cidade, pensava na aposentadoria, nos tempos bons, dos amigos que tombaram no cumprimento do dever, no sonho de uma chácara onde criaria galinhas e muitos cães, lembrou-se de Madalena, a meretriz da Rua das Flores, que prendera várias vezes por desacato e desordem quando prostituição era chamada de vida fácil, uma carreira de quarenta anos passa por sua cabeça, mas... quem dera o tiro do metrô? E por quê? Seria uma covardia aposentar-se agora sem desvendar este mistério, decidiu, por um instante, deixar tudo para lá, mas voltou atrás, iria resolver só este caso e aí sim, poderia criar suas galinhas. Sentia-se envelhecido, cansado, já cometera bobagens por conta do cansaço, como prender alguém antes do delito cometido, estava desenredando. A paisagem, e o ar fresco suaviza por definitivo sua alma, até que o veículo empaca, esquecera-se de colocar gasolina, era comum o ato falho, empurra-o até o meio fio e olha para avistar um posto, admira a paisagem da cidade grande, que de tão grande já não o cabe mais, quando seus olhos param no alto de um morro, uma casinha simples, caiada, lembrava-se dos dias que por ali passou e sem querer desviava para ver Laura, sim, Laura; por onde andaria Laura, lá se vão 25 anos desde então não a vira mais, era uma dançarina da boate La Coste, ficava ali na rua da Figueira, lugar não muito bem frequentado, era uma zona de meretrício, mas Laura era linda com seus olhos esverdeados, ancas suaves, muitas fezes passara por ali para ter com ela, viera com Laura um momento de oásis nesta vida incompleta de um agente de polícia, vinte e cinco anos... Por onde andaria? Como estaria agora depois de um quarto de século? Tinha na época vinte e três anos de uma vida irregular, viera do interior, fora posta para fora de casa depois que o pai descobrira que fora deflorada pelo capataz da fazenda com quem mantinha um morno namoro, tabus de uma época que ficaram vinte cinco anos atrás, hoje não há meninas virgens ou ninguém mais põe filha na rua por isso. Moura distraiu-se retornando a um passado distante feliz e conflitante, era viúvo, a lembrança deste fato, deste adultério remetia-o também ao cemitério, fora um casamento sem felicidade, casara sem amor, sem desejo, Lúcia era uma mulher fria, distante, desinteressante, conta nos dedos os momentos de intimidade com ela, mas Laura não, era quente fogosa, amante, verdadeira, sabia ser mulher sob os lençóis. Puxou do fundo da alma um golpe de ar, expirou o ar da saudade naquela fria manhã de solidão enevoada; voltou-se para o lado e percebera que ali parou para buscar gasolina, caminha. Na chefatura as coisas prosseguem como se o mundo estivesse encarcerado, uma mulher presa por discussão com a vizinha e o marido detido por espancar a esposa, rotina triste para um estagiário como Matias, porém no infinito do seu interior pensa sobre o delito da quase manhã no metrô e sobre o enigma que reveste a figura de Moura, percebeu que ele tratou o fato com a frieza de um iceberg, com o profissionalismo quase automático, não se intimidou com o choro das senhoras em desespero, nem com o alvoroço dos homens, nem com a atitude precisa dos paramédicos, que alma teria Moura, o que aqueles olhos cansados teriam visto ao longo da carreira, pensava que um dia queria ser como ele, agente que jamais perdera uma causa, sempre resolvera seus delitos. Depois de alguns dias com a alma praticamente entregue ao criador Eduardo parece que vai sair do como induzido em que fora submetido pelos médicos, afinal não seria desta vez que deixaria a vida para virar estatística dentre os mortos, mas não escapara da estatística dentre os sobreviventes. Porém um fato intrigava enfermeiras e médicos, quem seria aquela mulher que não mostrava o rosto que o visitou por duas vezes nestes últimos sete dias em que esteve na U.T.I.? Misteriosa e calada parou, sempre que lá esteve, por no mínimo umas duas horas diante do vidro olhando fixa, um capuz enorme cobria-lhe a face, trazia na mão um rosário de contas e passava a rezar baixinho, petrificada, tal como uma estátua, depois saía de cabeça baixa, descia as escadarias e sumia ao ganhar a rua; seria, quem sabe, uma dessas freiras caridosas que percorrerem hospitais intercedendo, com suas orações, pelos enfermos? Eduardo, depois se soube, era um jovem ator, cursara arte dramática numa universidade de outro estado, fizera dança também, era, quando se pode ver, um rapaz de traços suaves e delicados, gentil, educado, fizera até uma semana antes do tiro, parte de uma peça em cartaz na cidade, mas que terminara sua temporada; soube-se disso quando Emanuel visitou-o no hospital, pareciam amigos, pois este lamentou bastante o fato ocorrido e mais uma vez a pergunta cruzou os ares do ambiente sem resposta, quem fizera isso? Afinal Eduardo parecia inofensivo, nunca se soube de algo que o comprometesse, nunca se falou de qualquer envolvimento sentimental, aliás, estranhava-se muito, pois com os traços de Apolo, era assediado, mas sempre se mostrou distante, Emanuel talvez tivesse mais detalhes, pois eram quase que inseparáveis, que segredos teria ele guardado sobre Eduardo. Naquela noite, após voltar do hospital, Emanuel ligou para Alexandre e disse que o amigo ator estava se recuperando bem, Alexandre do alto de sua arrogância não pareceu importar-se muito com o fato, limitou-se a um: “tanto melhor, assim você fica menos agitado.” Alexandre era um alto funcionário de um banco na avenida central, casado com Emília, não tinham filhos, ele não suportava crianças, chegara a cursar economia, mas se formara em administração de empresas, sempre pareceu incompleto, irritadiço, mas Emanuel parecia saber lidar com isso, logo desligou o telefone depois de mais uma ou duas palavras; sentou-se recostado no sofá com olhar fixo no teto e ali ficou até dormitar. Eduardo, no seu leito de hospital teve algumas visões de sua vida, recordou da infância sem mãe biológica, pois fora criado desde os três anos por uma família de classe média na zona oeste da cidade, tivera carinho, tivera estudo e compreensão, mas suas origens o intrigava, por que seus pais o entregaram a esta família, da qual se afastou assim que concluiu o curso de dança na Europa, há tempos deixara de visitá-los, o ferimento doía, chamou a enfermeira, deram-lhe um sedativo, o pensamento vagou, pensou ter visto uma mulher que o olhava fixa, não era sua mãe adotiva, mas era noite, as visitas acabaram às quinze horas, delírio certamente, mas ali estava estática aquela figura, doce, suave, meiga, sem rosto, porém; não conseguia enxergar, era certamente efeito do remédio.
Adormeceu. O dia amanhecia; o sol rasgava o ventre da natureza manchando o céu de vermelho alaranjado num eterno parto da existência, Moura levantou-se depois de passar uma noite quase toda em claro pensando em Laura, repassando vinte cinco anos de vida, relembrava-se do dia que a encontrou na boate, ofereceu-lhe uma carona e acabou com ela num quarto de um hotelzinho barato da Rua da Figueira e assim transcorreram-se muitos encontros, tornaram-se amantes, era uma mulher diferente, amante vigorosa, consciente de sua posição social, foram muitos os encontros, até que depois de uma noite linda de prática de amor, acordou abraçado à solidão, Laura levantara-se cedo e sumira como se esvai a fumaça no ar, procurou por dias, meses, vinte cinco anos, por onde andará Laura? É a pergunta que não tem resposta para este investigador implacável, resolvera tantos casos indecifráveis, mas não resolveu o seu próprio, alimentou o seu cão de estimação e rumou para chefatura de polícia, pensou pelo caminho de congestionamentos tão longos quanto os vinte cinco anos de busca, passou pelo morro da casinha branca, caiada, e prometeu a si mesmo que depois do expediente passaria lá, quem sabe lá não estaria Laura. Na chefatura Matias se antecipara em um caso de latrocínio, meliante perigoso assustava a população de um cortiço, Matias, sempre fiel, recebera a denúncia e já organizara a diligência, Moura adentra a sala com o seu ar imperial e já se posiciona para comandar mais uma busca, ajeita o revólver na cintura, coloca o distintivo no peito, chama Matias com um aceno e desce as escadarias e apossando-se do banco do lado do motorista que não por acaso era Matias. O local era estarrecedor, sombrio, mas ali amalocara-se um bandido perigoso e fazia os moradores seus reféns, agora o acusavam de ter matado e roubado o salário de um dos muitos pais de família ali existentes. Moura olha da rua o cortiço como quem fareja tal um perdigueiro a caça, sem palavras apontou para uma casa de cômodos com o cadeado amostra, Matias retrucou: “Chefe aquela porta está trancada por fora, não pode ter alguém ali.” Moura não lhe deu ouvido e subiu como um raio a escadaria encardida do cortiço, percebera que havia luz pela soleira, gritou: “Abra!” A luz se apagou, tornou a intimar, sem resposta; meteu o pé na velha e deteriorada porta que veio abaixo sem muito esforço, mas assim que ela caiu dois estampidos foram ouvidos, Matias se abaixara, os moradores curiosos sumiram, ao levantar a cabeça Matias percebe o chefe em pé a sua frente, concluiu; o bandido morreu. Sem piedade Moura estourara o assassino e sem saber libertara um garoto de uns cinco anos que ele tinha por refém, uma senhora piedosa olhou fundo em seus olhos e perguntou-lhe: “Será que ele vai para o céu?” Secamente Moura responde: “Por mim já foi!” Desceu a escadaria como quem conta os degraus, acendeu um cigarro, sentou na viatura, Matias incrédulo o segue à distância. No caminho de volta para a chefatura, Matias o indaga sobre como descobrira o quarto certo do bandido, a resposta foi o sempre silêncio que rodeava aquele homem de meia idade e que se orgulhava dos tantos anos emprestados à policia. Sua cabeça era um mistério. Resolvido o caso já pensava em outra coisa, no intrigante caso do metrô, quem seria o atirador? Por qual motivo o fizera? Refez o caminho das escadarias mais uma vez, verificou a angulação do tiro, revirou a cena do atentado por mais de três vezes, seu faro parecia falhar neste caso, desvendara casos mais difíceis, como o da joalheria da Praça da Matriz, abriu um leve sorriso, eram profissionais. Resolveu visitar Eduardo no hospital, melhor interrogar; ao adentrar o quarto sentiu algo como um repuxo no peito, as mãos frias, seu olhar cruzou com o do garoto, mas ele jamais fraquejaria em ação e desfechou uma pergunta: “Tem ideia de quem fez isso com você?” Diante da reposta negativa continuou; sabemos que mora na Rua da Consolidação, a metros da estação onde foi alvejado, num apartamento de dois quartos, é só e que trabalha como ator e dançarino: “tem namorada?” “Não.” Nunca fora visto com alguém, nunca apresentara nenhuma companhia afetiva, talvez Emanuel soubesse mais sobre esta vida misteriosa, Moura sai do hospital com mais dúvidas do que entrara uma certeza, porém ele tinha, de que desvendaria o caso. Emanuel era seu vizinho do andar de cima, conhecera Eduardo do subir e descer dos elevadores e foram travando amizade até tornarem-se inseparáveis. Era um rapaz de uns vinte cinco anos, alto, magro, negro, como Moura, formado em direito, mas tinha uma pequena rede de lanchonetes em médias livrarias da cidade, tinha em Alexandre um grande amigo, mas estranhava o fato deste manter um apartamento alugado no andar de baixo, nunca o convidara para visita-lo lá, e pedira que nunca comentasse com sua esposa o fato, Emanuel estranhou, mas manteve o segredo, verdade é que passava horas lá dentro após o expediente, nunca vira entrar ali ninguém acompanhando Alexandre, não podia ser um apartamento de encontros, certo que Alexandre não gostava de Eduardo, embora fossem vizinhos de parede, mas nunca se encontravam, pois Eduardo era notívago e Alexandre era o senhor do dia, eram sol e lua, numa dessas comparações poéticas. Moura levantara todos estes dados, pusera seu fiel estagiário para trabalhar, o que guardaria Alexandre no apartamento clandestino? Talvez fosse um dos chefes do tráfico de heroína, que a esta época grassava na cidade, cativeiro para sequestrado? Moura conseguiu um mandato para verificar o imóvel e o fizera, mas nada encontrou; tudo perfeito a não ser o fato de que lá só tinha uma cama de casal, um fogão e um armário embutido, documentos da empresa sobre uma mesa, mas arrumado com cuidado, embora nunca se vira nenhuma faxineira por ali. Isso aumentava a curiosidade de Moura. O expediente terminara naquele dia ensolarado, o agente se dirige para casa, é hora de cumprir a promessa do início do dia, subir o morro e desvendar a casa caiada, o ar se desanuvia só por pensar que poderá encontrar Laura, a mulher dos seus sonhos, sentia-se refrescado só com a ideia, embora fosse um dia abafado, percorre o caminho com a calma dos justos e o anseio dos amantes, ofegava internamente, parou diante da casa que de perto tinha um aspecto triste, algo com cheiro de passado, a cal que a revestia trazia a marca do tempo, o jardim aparentava não ver um cuidado por vinte cinco anos, teve medo interior de ver o que poderia encontrar ali, mas nada intimidava o velho Moura, vira coisa pior ao longo da carreira, bateu palma forte como a saudade que o instigava, depois de alguns longos minutos a porta rangeu em abertura como quem geme ao peso do tempo, o fundo escuro, nada ali inspirava claridade, uma senhora de cabelos desgrenhado, grisalho, gorda, pele enrugada, flácida, de um caminhar ledo como tempo e voz pastosa, vestindo um largo vestido florido de pano vagabundo, sorriu um sorriso de destes cariados, chinelos gastos com o tempo, calcanhares rachados e cascudos, era uma visão de quem emerge da tumba depois de vinte cinco anos de morta. Seria esta a linda Laura, pensou com seus botões o experiente Moura. Calou-se diante do fato, a situação era constrangedora, era essa a linda moça que conhecera anos atrás? O que acontecera para tamanha transformação? Puxou o ar com a força de um náufrago, acertou o chapéu panamá na cabeça e disparou certeiro como seus tiros de função: “Procuro por uma moça chamada Laura, a senhora a conhece?” Tinha na memória a imagem singela da moça, não este farrapo humano que se lhe apresentava. Podia sentir nos lábios o calor da saudade de seus beijos, a mão suave deslizando sobre seu robe abarcando coxas lisas e trêmulas de desejo, sonhou ousadias, parou no tempo feito um colibri diante da flor, o pensamento vagou no tempo, era a mera sombra da lembrança que o abraçava naquele instante; não, eu não sou a Laura, ela morreu há vinte cinco anos. A resposta cruzou o ar como um raio cruza o céu em noite de tempestade, feriu seu peito uma flecha disparada pelo tempo, as mãos esfriaram, a cabeça girou com o vento frio que começa anunciando o entardecer, petrificou-se, “a vida a maltratou muito, não resistiu às desventuras que a vida lhe ofereceu e fraca entregou-se à bebida e ao cigarro e definhou, murchou como um maracujá largado no campo, teve que entregar seus filhos ao mundo por não poder criá-los, isto a lançou no fundo do poço e a beleza desmanchou-se, homens desapareceram, fora lançada fora como o bagaço de uma laranja..” Via-se então o que ninguém jamais vira, Moura fraquejar e uma lágrima, única, solitária, triste, desce lentamente por sua face marcada por muitos momentos difíceis. Passou a mão sobre a face espantando a tristeza, agradeceu e voltou às costas para sair; “Quem é o senhor?” Indaga a sinistra figura, o agente policial Moura, minha senhora; respondeu ainda de costas. Um silêncio de vinte cinco anos tomou o instante, a casa caiada parecia receber certa iluminação, “Quem?” Reforça a pergunta a mulher. “Moura, agente Moura”, reafirma. Espere um instante, afirma a mulher, entre, já que veio procurá-la entre. Moura pensou, mas aceitou com passos contados e acompanhou a velha senhora, adentra a soleira da porta com o receio de quem adentra um túmulo em exumação, uma sala trastejada de móveis envelhecidos, almofadas encardidas, um velho gato dormita sobre a cristaleira vazia, tudo ali remete a um passado, cheiro, tempo, verte passado, uma velha xícara descansa ao lado de um bule ainda morno, como a situação, “Aceito um café?” Moura agradeceu, dispensou o mimo, seus olhos pararam quando reparara que sobre a cristaleira jazia um retrato, o retrato do passado, amarelado, em branco e preto, manchado pela umidade das goteiras, era ela, Laura, ainda exuberante envolta em buás, dentro de um maiô justo, as pernas à mostra, era ela linda, o coração pareceu renascer, o ar voltou, rejuvenesceu vinte cinco anos, todo este tempo não pusera os olhos sequer numa fotografia dela, era o êxtase. Moura, disse a mulher em voz quase inaudível, eu sou a mulher da foto, Levantou-se num susto, como se me disse que ela morreu? Indagação que já vem respondida negara ser Laura porque tinha vergonha do que tinha se transformado, um farrapo, mas reconhecera o agente assim que abrira a rangente porta, quisera se esconder, mas não aguentou e agora revela sua real identidade, disse ter dois filhos gêmeos e que os entregara à roda dos enjeitados da Santa Casa e que não tinha a menor ideia de por onde estariam, disse que foi se acabando por conta disso, se prostituiu pelas avenidas, se entregou a qualquer um como um pedaço de carne desprezada, se puniu, chorou e agora doente esperava a morte ali na sua eterna sepultura, Moura estremeceu por inteiro; mas Laura, porque não me procurou na chefatura, indaga. Não, você não sabe o que é ser usada, e você também me usou, sumi naquela madrugada porque já estava grávida, você não me assumiria, era casado, como deixar uma mulher honesta por uma vadia, não Moura, não tinha eu este direito. O agente calou-se, fechou os olhos por instantes, estendeu a mão para ela, sentiu-a trêmula, ao abrir os olhos nota que esta está ofegante, chama por seu nome, porém sua cabeça tomba; se desespera. “Laura!” Sem resposta, tomou o pulso, imperceptível. Morreu, exclama incrédulo, esperou vinte cinco anos para morrer, esperou para morrer segurando a mão do único homem que amou. Saiu fechando a porta do passado atrás de si, chorou copiosamente como uma criança perdida de sua mãe, sentia-se mais só do que nunca, blasfemou baixinho, trocou de mal com Deus, descompôs-se. Chamou Matias na chefatura e anunciou a morte e disse que tudo deveria ser colocado em sua conte, sim ele pagaria o funeral. Levantou-se lentamente, mais uma vez olhou para cima, farejou o ar e prometeu à memória de Laura que encontraria os dois meninos. Partiu.
Emanuel ajeita Eduardo na cama, deixou o hospital, praticamente recuperado, mas ainda inspira cuidados, ajudado por Mariana, que chegara minutos depois, Eduardo agradece estar vivo, mas se indigna... Quem faria tal loucura e por que o faria? Pensa em muitas hipóteses, mas não encontra resposta, mulher não poderia ser mesmo porque já fora dito que era um rapaz, tivera muitos amigos e alguns desafetos, era uma figura ambígua, tivera relacionamentos secretos, tanto com moças quanto rapazes, mas que não vazara nunca, jamais fora pego ou flagrado em atitude suspeita, não aparentava trejeitos, apesar da delicadeza das expressões ou gestos, mas isso não era prova definitiva para tanto. Emanuel fora sempre a pessoa mais próxima, que como um anjo sempre zelara por ele, Mariana, amiga nova que conhecera em um dos espetáculos, era uma atriz iniciante que se aproximara com a vontade de aprender, tinha por volta de vinte e dois anos, bonita, mas não chamava sua atenção, mesmo quando Emanuel dissera que ela o provocava, não, imaginação sua ela só quer aprender a representar. Emanuel preparou para ele um caldo verde, leve como a prescrição médica, lembrou-se de Alexandre, o vizinho estranho do apartamento do lado, sentiu-se incomodado.
Pareceu ter ouvido barulho no apartamento ao lado, como se alguém removesse algo, agora sozinho sentia-se bem, lembrou que se dirigia ao teatro no momento em que fora atingido, pensou em algumas pessoas, nenhuma com perfil de assassino, nenhuma com motivo para o gesto, Pierre, aquele francês simples, uma pessoa alegre, dividiram uma apartamento por dezoito meses, até seu retorno ao Brasil, sentia saudade, trocavam mensagens vez ou outra, prometera vir para cá, mas nunca se concretizara, passou; lembranças são como nuvens vêm e vão ao sabor do vento, passara momentos felizes, mas teve muita contrariedade, é a vida, sente calor, descobre-se; agora quase nu livra-se do calor forte daquela tarde, ouve cair algo, como uma cadeira, parece vir do apartamento do lado, chama Emanuel, sem resposta; Mariana já havia se ido há algum tempo, estranho barulho, Emanuel, com seu ar de mistério também deveria ter partido, estava só; lembrou-se do vulto da mulher de preto no hospital, ninguém conseguiu desvendar o mistério, não deixara qualquer vestígio, não conseguira ver o rosto da esguia figura. Adormeceu. Três dias depois do ocorrido Moura volta para seu trabalho na chefatura, silencioso e decido assume seu posto e ordena a Matias a fazer uma diligência na casa de Eduardo, depois Emanuel e Alexandre, enfim queria uma varredura no caso do Metrô, a imprensa até já se esquecera do fato e já não abriam mais manchetes, Matias obedece, ele volta-se mais uma vez para seu café pensando que tivera dois filhos com Laura e nunca soubera; imperdoável, não a culpava, mas a si, sua omissão, sua irresponsabilidade, agora Laura é morta, quer resgatar os filhos, conhecê-los, olhá-los nos olhos e dizer que é seu pai biológico, enfrentar a indiferença e revolta, mas estava decidido. Vestiu o velho sobretudo, arrumou o antigo panamá na cabeça e partiu. Sem destino, simplesmente farejou o ar. Partiu. Agora recuperado, depois de longos dez dias de repouso Eduardo volta às atividades, com pequenas dores, mas já era hora de voltar, recebido com festa, por seus amigos, Mariana se desmancha em gentilezas, fez um bolo com seu retrato, sentia-se em casa, evitara a estação do metrô, fora de carro com Emanuel, comentara que ouvira barulho no apartamento ao lado, Emanuel desconversou, implicância sua com o vizinho. Alexandre que detestava a vizinhança mantinha aquele apartamento vizinho de Eduardo, apurou Matias, teve um problema no banco anterior em que trabalhara por desvio de dinheiro, estivera metido num esquema de lavagem de dinheiro, respondia um inquérito por isso, era sempre irritadiço, pouco se relacionava com a esposa, casara para parecer ser um homem responsável, traíra a mulher com uma colega de serviço, sua família mantinha um segredo que o incomodava, sua mãe nunca respondera com precisão as perguntas sobre seu nascimento, dos quatro filhos ele era o mais moreno, cabelos negros e olhos castanhos bem escuros, de um biotipo diferente dos demais, isso sempre o intrigara, pediu que fizessem um exame de paternidade, negaram; discutira com o pai, ofendera os irmãos, na adolescência se envolvera com maus elementos por conta dessa revolta, ostentava uma vida de classe média alta, não ganhava mal, mas tinha uma necessidade incrível de aparecer, ser notado, faria qualquer coisa para estar no foco das atenções, desconfiava-se que tivera uma filha fora do casamento, fruto de um relacionamento furtivo. Internava-se por horas perdidas naquele apartamento quase vazio, nunca se soube o que lá fazia, jamais foi visto entrando com alguém, logo não o mantinha para encontros, jamais dormiu lá, a não ser a noite em que Eduardo chegara do hospital e ficara só. Emanuel viera do nordeste, Salvador, era amigo de ambos, mas nunca fora visto entrando naquele apartamento, era um misto de faz tudo, já havia tentado ser ator, fizera pontas em novelas, pontas em peças; trabalhara como bancário no banco de Alexandre, aliás, fora lá que iniciaram este relacionamento de amizade; solteiro, cuidava com carinho extremado de Eduardo, Alexandre até fizera comentários maldosos, Emanuel ruboresceu, mas não contestou, desconversou. Verdade que sempre fora prestativo, ajudava os amigos indistintamente, a guia branca de Oxalá no pescoço indicava isso, era adepto do candomblé, deixara seu Ylê para vir para tentar a vida por aqui, foi um dos primeiros a visitar Eduardo no hospital, vira certa tarde aquela mulher estranha descer as escadarias e ganhar a porta, seguira por instantes, mas a perdeu de vista na multidão, intriga-se com o fato de como uma mulher vestida com aquela capa sumira de sua vista, recorrera aos búzios para desvendar o mistério, mas nunca revelou o que descobrira, mantinha-se discreto como manda a regra de sua religião afro. Matias fizera um relatório completo para Moura, pensou não ter deixado detalhe passar ao largo da sua visão aguçada, pois sabia que o chefe era exigente e minucioso, só não conseguira entrar no apartamento de Alexandre, mas pediria um mandado na chefatura para poder vistoriá-lo. Enquanto isto Moura voltou à casa de Laura, tudo ali cheirava passado, tinha mofo nas lembranças, soturna e sombria a casa parecia sufocá-lo, passou a mão sobre os móveis envelhecidos pelo tempo, abriu uma gaveta da cômoda, retirou de lá uns papeis amarelados e descobriu que Laura tivera os gêmeos na Santa Casa e por lá mesmo os deixara na roda dos enjeitados para adoção, descobriu também que um fora adotado por uma família do interior e outro ficara na capital mesmo, até certo ponto da vida ela os acompanhara a distância, mas a bebida e o desregro da vida a afastou deles, descobriu que ela escrevera muitas cartas que nunca lhe foram entregues e nelas confessava seu amor e sua degradação como ser humano, seus olhos lacrimejaram, sentiu-se o pior dos humanos, mas agora nada podia fazer. Vasculhou o passado como quem garimpa diamante e buscou as famílias que adotaram seus filhos, as encontrou e percebeu que o melhor seria não incomodá-los, saberia de tudo por investigação indireta. Naquela manhã resolvera que ele mesmo faria a diligência, poria fim ao caso do metrô que desconfiava tinha a ver com o seu passado, achava estranha a semelhança física entre Alexandre e Eduardo, a mesma idade, um era o reflexo do outro, queria afastar esta dúvida, em suas pesquisas tudo se encaixava e a seta do destino apontava aquela direção. Era uma tarde de sol morno, de brisa fria, era uma tarde em que Eduardo ensaiava em seu apartamento passos de uma dança para seu próximo musical, nunca se vestia para ensaiar em casa, não usava o colant costumeiro, preferia ficar de cuecas para melhor elasticidade, ouvia Bach para se acalmar deitado em sua ampla cama, um barulho o interrompe, assusta-se; viera do apartamento ao lado, um som abafado de quem cai sobre panos ecoou dentro do seu armário embutido, levantou-se, abriu o armário, parecia tudo em ordem, voltou para seu leito, cochilou. Moura caminha lento por entre o arvoredo da avenida, metido no seu sobretudo. Embaixo do seu panamá é um só pensamento, fixo, determinado na busca dos filhos, na busca do autor do atentado, mais decidido do que os que apuraram o tiro da Rua Toneleiros, pensava no quebra-cabeça em que se transformara sua vida, justo ele cansado de resolver o insolúvel era ao mesmo tempo procurador e procurado, procurado do destino implacável, tirou do fundo dos seus pensamentos: “Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.” Seu jeito de homem rude, calejado pelos anos de polícia, não deixava transparecer que era um homem culto, sacara esta frase de Friedrich Nietzsche do fundo de suas noites em claro lendo e filosofando sobre a vida e os homens. Moura era por si só um poço de estranheza, um desses buracos em que nunca se chega ao fim, caminha, olha os prédios, as antenas de televisão da avenida Central, dobrou a esquina e adentrou a Rua da Consolidação, caminhou mais quinhentos metros e estava diante do prédio de Eduardo, começaria por ali, enfrentaria a primeira das duas supostas feras, pensou como seria recebida a notícia de que era seu suposto filho perdido, parou; e farejou no mais tradicional estilo perdigueiro. Eduardo inicia seu treino, dançava Debussy, saltava como uma garça ao iniciar um voo, o som o inebriava, deixava o chão e viajava como um meteorito no espaço sem gravidade, gestos largos, delicados. Naquele dia Alexandre não fora visto, Emanuel ligara para ele, mas caiu na caixa postal, não fora visto no trabalho, Emanuel queria conversar com ele sobre um assunto pessoal da conta bancária, não estivera também na academia, que, se diga, raramente frequentava, enfim, não fora visto. Mariana marcara com Eduardo para dançarem juntos, ela faria par com ele na dança da peça, ficara esfuziante, pois nutria certa atração por ele, achava-o bonito.
Ali, diante do edifício, parado, olhando permanecia Moura, só como sempre viveu, fechado em si como uma ostra, decidiu entrar. Alexandre, que não fora visto naquele dia estava em seu apartamento, passara a noite ali, só. Figura estranha, irritadiço, mas determinado em seus propósitos, admirava Eduardo como artista, cometera uma invasão de privacidade ao criar uma parede falsa em seu quarto que coincidia com o fundo do closet do vizinho e por ali o observava em seu repouso, em sua intimidade, admirava-o, via sua própria realização, sempre quisera ter habilidades artísticas, mas não as tinha e se via em Eduardo, em cada gesto, em cada atitude, invejava seu corpo esguio, sua pele amorenada, seus cabelos negros e olhos escuros, era seu reflexo, mas era visto com carinho por amigos e colegas, o que não era bem o caso de Alexandre, nada simpático e profundamente arrogante, Eduardo era leve, suave, de uma tez delicada, expressão verdadeira, única, sabia ser ele uma pessoa aberta, sem preconceitos, livre como os saltos que dava no ar. Naquele dia ficara em seu apartamento na observação do vizinho, olhando-o pela sua passagem secreta que este sequer imaginava. A cada passo novo extasiava-se, enchia-se de ódio ao mesmo tempo, a inveja o corroía, a adrenalina o envenenava enquanto Eduardo bailava leve pelo quarto distraído, com os olhos embotados de raiva e lágrimas, arromba a porta do closet e ataca descontrolado Eduardo assustado, empurra-o junto à ampla janela do apartamento de construção antiga, aos gritos de odeio você, odeio sua dança, seu corpo perfeito, sua fala, Eduardo assustado nada entende. Moura na calçada decide entrar, sem elevador, segue pela escadaria escura do velho prédio, teria que subir cinco andares dos sete que compunham o edifício, para chegar ao apartamento de Alexandre, ao chegar ao quarto andar ouviu gritos de raiva e ódio que ecoavam pelos corredores, a velha pratica policial desperta nele o perdigueiro que andava meio encolhido, acelerou o passo, chega ao apartamento de Alexandre, a porta fechada, bate, não nota a companhia, bate outra vez, os gritos agora pedem socorro, força a maçaneta e percebe a porta destrancada, abre-a, adentra o espaço da sala, os ecos parecem vir do quarto, dirige-se para ele e percebe a parede aberta e os alaridos mais fortes, quando se prepara para entrar ouve um estampido, seco, contundente, um tiro. Correu, atravessa a passagem secreta e se depara com um rapaz de cuecas estarrecido, colado junto á janela e outro totalmente vestido, mas com a cabeça mergulhada numa poça de sangue, a bala atingira em cheio sua têmpora, correu em socorro, tomou-o nos baraços, gritou por seu nome, tomou a pulsação, expirou forte e desanimado, levantou o olhar para Eduardo e disse com pesar: "morto, está morto!” Deixou cair um par de lágrimas, pela terceira vez chorava sentido em tão pouco espaço de tempo, apertou a cabeça de Alexandre junto ao peito deixando-as cair em seu rosto inerte, voltou seu olhara para Eduardo ainda estarrecido, assustado, trêmulo, vocês eram amantes? Perguntou sem rodeios. Não, respondeu Eduardo, depois de uma longa pausa, e não tenho a menor ideia de quem atirou nele, experiente, Moura não desconfiava do rapaz, jamais alguém em desvantagem e nitidamente dominado pela vítima teria angulação para um tiro como aquele, descartou a possibilidade. Percebeu abrir a porta da sala do apartamento de Eduardo, era Emanuel que chegava para observar o treinamento com Mariana, por isso deixara a porta destrancada, afinal Emanuel tinha acesso liberado, chamou por Eduardo sem que obtivesse resposta, chamou outra vez já a caminho do quarto, parou pasmo na porta ao se deparar com a cena, correu para Eduardo abraçando-o e chorando a morte de Alexandre, como isto aconteceu? Indagou olhando para aquele senhor que continuava ali inerte, sem palavras, porém seu pensamento girava com a rapidez dos tufões, nem desvendara o caso do metrô e outro tiro já o intrigava; assim não se aposentaria nunca, pior era ter o filho que ele, já sabia não era mais suposto, havia comprovado pelos documentos que pesquisara e checara na Santa Casa, na casa de Laura e nos cartórios, sabia que Alexandre era um dos gêmeos que buscava na imensidão da cidade. Emanuel está estático, sem palavras, afinal perdera um amigo, como falar para sua esposa; ainda atônito pergunta para Eduardo: “Por que você fez isso? Não precisava matar e estragar sua vida, eu sei que ele te odiava, mas era uma mera questão de ignorar, Eduardo!” “Eu não o matei; como na plataforma do Metrô um tiro surgiu do nada e atingiu em cheio a cabeça do Alexandre.” Disse Eduardo em resposta a Emanuel. O tiro pareceu vir da passagem no closet, disse já um pouco menos tenso, Emanuel dirige-se a fenda e a ultrapassa como um raio e encontra sobre a cama uma capa preta como aquela que que fora descrita pelos médico no hospital, pensou ser Alexandre a figura misteriosa, mas logo descartou a possibilidade, disseram que era uma mulher, Alexandre jamais se vestira de mulher para visitar o enfermo, era masculino demais no porte, desconfiariam, não; reluta em busca de uma resposta rápida, lembrou ter visto Mariana deixar o prédio quando chegava, parecia estar apressada, afobada, lembrou que não respondeu sua indagação sobre o ensaio, sem desconfiar do que encontraria no apartamento de Eduardo deixou-a ir, pensava só, nada disse a Eduardo ou a Moura. Sentou-se na cama para melhor pensar, sabia onde ela morava, pensou em ir até lá, recuou da ideia, levantou-se, iniciou o passo e sentiu algo sob os pés, era um brinco um brinco de pressão, uma bijuteria fina dourada adornada com pedras vermelhas brilhantes. Teria Alexandre recebido uma mulher em seu apartamento? Pensou, mas descartou a ideia, devido o ocorrido, pensou na engenharia criada por Alexandre só para observar o vizinho, isso era ideia fixa, não acreditava em outra possibilidade. Chegou a aventar o envolvimento amoroso entre eles, mas deixou de lado, não porque fosse impossível, mas porque sempre nutrira um sentimento secreto pelos dois, chegou a confessar ao seu interior, mais pela rispidez de Alexandre do que pela leveza de Eduardo, deixou que uma lágrima rolasse sem rumo pelo morto e outra pelo agredido, deixou que a ideia se evanescesse. Agora era hora de outras atitudes, buscar o assassino. Moura pede a Matias que venha ao seu encontro e ordena uma varredura no entorno do prédio para ver se encontrava indícios do crime, Emanuel entrou e disse que não era preciso, pois ele sabia quem fora, e para surpresa de todos o assassino voltou à cena do crime, em pranto copioso Mariana adentra o quarto e se entrega às algemas de Matias, fora ela quem desferira o tiro para salvar Eduardo, de quem confessa ser apaixonada, das garras de Alexandre, ela também vira naquele dia Alexandre se aproximar de Eduardo na plataforma do metrô e fazer menção de que o empurraria para os trilhos na hora em que o trem estacionasse na plataforma e tudo não passaria de um acidente, não teve dúvida, sacou da arma que sempre trazia e atirou, mas errou o alvo e atingiu Eduardo, que a tudo ouviu estarrecido, Moura olhou para Eduardo e teve a certeza de que ali estavam seus dois filhos gêmeos, quis contar para Eduardo a verdade, mas recuou, de que valeria agora esta verdade pela metade, gostaria de ter os dois em seu abraço, queria dizer aos dois que era o pai biológico deles, mesmo que eles o rejeitasse, mas teria cumprido seu papel de pai, teria assumido a ambos, mesmo que tardiamente, daí em diante, seria com eles, não passariam a vida sem saber quem era seu genitor. Ordenou que encaminhasse Mariana à delegacia e deu o caso do metrô por encerrado. Emanuel não precisou perguntar, concluiu com certeza de que a mulher do hospital era Mariana, Moura já sabia, só não tinha certeza absoluta, por isso se calara. Emanuel abraçou Eduardo com muito carinho enquanto os homens do rabecão recolhiam o corpo de Alexandre para encaminhá-lo ao I.M.L., tratou logo de limpar o sangue do chão, enquanto Eduardo tentava entender a situação ainda em estado de choque. Oito dias depois Emanuel leva Eduardo para uma viagem e se restabelecer do impacto, partiram rumo ao nordeste, quiseram passar na chefatura para despedirem-se de Moura, que mais uma vez tentou contar a verdade, mas as palavras não saíram, deu um abraço apertado e demorado em Eduardo, outro também em Emanuel, viu ainda, quando já na calçada, Emanuel passou o braço sobre o ombro de Eduardo e caminharam juntos rumo ao carro, pensou com os seus botões: “sejam felizes.”
Aquela manhã era fria, uma fina garoa caía como se fosse um choro lento, por volta das dez horas o caixão baixava sepultura, uma despedida solene para quem viveu solenemente, tiros para chão, Matias rendeu sua última homenagem lançando uma rosa vermelha sobre o caixão, levantou a cabeça, enxugou as lágrimas, últimas e teimosas, farejou o ar e disse: “descanse em paz chefe!”.

Moura morrera numa noite após o fato da Rua da Consolidação, morrera dormindo, morrera dentro do silêncio que sempre norteou sua vida, toda a chefatura sentiu muito a partida inesperada, não só se aposentava da polícia, mas também da vida que só lhe pregou peças. De volta para a chefatura de polícia Matias pensava no que tinha sido Moura na sua vida, acelerou a viatura quando pelo rádio ouviu um alerta de que havia um incidente na estação de metrô da Avenida Central, alguém disparara da escadaria e tinha um ferido, Matias ligou a sirene e irrompeu sobre a multidão que se aglomerava, olhou para o alto e disse: “agora é comigo chefe!” Fechou seu diário e assinou: Matias.

SÉRGIO SOUZA

29 de set. de 2014

HOJE EU VOU ORAR

Nem sei se Deus existe,
às vezes parece que não...
Parece que dorme,
que foge,
se esconde.
Parece que perdeu o controle,
que não sabe o que fazer,
que é impotente.
Que está morto, que nunca viveu.
Não sei se tem Deus.
Não deve ter Deus.
Mas vou orar.
Não está tudo bem.
Vou fazê-lo
pelo trabalhador na rua,
que tem família pra cuidar,
se arriscando todos os dias,
morrendo por nada.
Pelo trabalhador
que vive sobrevivendo
uma vida sem retorno.
E pelo policial na rua,
que se arrisca todos os dias,
morrendo por nada,
com família pra cuidar,
matando sem puxar o gatilho.
Pelo policial
que vive sobrevivendo
uma vida sem retorno.
Pelos tantos homens
sem nome, sem sorte, sem nada.
De quem é a culpa?
Por incrível que pareça
acho que isso agora é o de menos.
Tenha às vezes a impressão
de que o maior despreparado para o cargo
é Deus.
Mas nem sei se tem Deus,
nem deve ter Deus.
Não custa tentar.
Hoje vou orar
para as paredes
no meu coração,
porque chorar
já tem muita gente fazendo.
GUI RODRIGUES

O PALHAÇO DO METRÔ

   


          Céu limpo e azul. Um dia quente fazendo revolução diante dos demais dias frios daquela semana.          
          O sol vinha banhar com sua luz a pele das pessoas absortas nas delícias daquele domingo sereno e agradável.
        Pusemo-nos, eu e um companheiro, dentro do vagão do metrô, enquanto conversávamos assuntos banais. Rumávamos ao centro da cidade, pois lá haveria um evento ao qual meu amigo encabeçava. É engraçado que nos meios de transporte vemos pessoas dos mais variados tipos: algumas mais extravagantes, com cabelos de todos os modos, roupas, brincos, tatuagens; outras bem discretas, uma roupinha básica e um cabelo normalzinho já lhes basta; mas todas em suas plenas singularidades.
      "Próxima estação...". Aquela voz automática indicava a estação seguinte e qual o lado que deveriam desembarcar os usuários que desejassem descer. Até aí normal; o assunto seguia, pessoas entravam e saíam, e nós aguardávamos nossa vez de desembarcar.
       Foi quando pôs-se no vagão um rapaz: alto, forte, muito forte, com uns braços largos como minha cintura, uma camiseta com as linhas quase rasgando por causa daquele peito demasiado musculoso, ombros largos, fazendo sintonia com o queixo exibicionista da masculinidade; enfim, um verdadeiro Hércules, com seus quase 1,90 de altura e uma idade que orbitava os trinta. Com o sobrolho enrugado, exibia tanto expressão de austeridade quanto orgulho de seu físico intimidador. Um valentão bem estereotipado, daqueles que se vê em filmes americanos.
        Batíamos ainda um papo, eu e meu companheiro, e embora percebêssemos que a celebridade do Olimpo, com sua feição de homem mal, encarava a todas as pessoas – distratando-as com o olhar, buscando amedrontá-las e às vezes conseguindo –, tentamos nos concentrar em nosso assunto, afinal há muitos boçais por aí.
        Levantou-se uma senhora, e o Hércules, com todo o seu tamanho, limitou-se a fitá-la quando ela lhe disse, baixinho e educadamente, "com licença, meu filho", pois era nesta estação que precisava descer. De braços cruzados, o animal exibia seus bíceps e antebraços visivelmente forçados para parecerem ainda maiores, forçando também a mandíbula, ornamentando seu rosto de ogro, enquanto a senhora se esforçava para driblar aqueles quase dois metros de pura imbecilidade. Não fosse a simpatia e a baixa estatura da senhora, acompanhadas de um corpo frágil, bem magrinho, decerto ela não desceria. Nossa celebridade, com olhar maldoso, ainda fitava da cabeça aos pés a boa senhora que já subia as escadas da estação e talvez já tivesse esquecido do ocorrido. Mas a besta musculosa não: ele era mal, bem mal, e por isso devia mostrar ao mundo, o quanto pudesse, a sua cara feia, desenhando em seu rosto expressões de um cão sarnento e raivoso, e doando-as às pessoas que cruzassem seu caminho de fera animalesca.
      Pois bem, tentamos ainda ignorar aquilo que se encontrava em nosso vagão, mas ao passo que aquela figura do ridículo olhava feio para todos ali – juro que tentei, suguei até o último das minhas energias em esforços fracassados – foi difícil conter: nascia fervilhando um riso do mais recôndito da minha alma, um riso que subiu depressa e me escapou no formato das mais sinceras gargalhadas. As pessoas não entenderam, pois é óbvio que um gargalhar súbito como o que me fugira, chamara a atenção dos usuários ali e principalmente do meu companheiro. Eu ria mesmo, com gosto, e não somente ria como também apontava a causa de tanta riso: a cara feia do Hércules contemporâneo. Meu amigo foi o primeiro contagiado, e lhe escapou também, tão rápido, o mais intenso gargalhar. O paspalho valentão, musculoso como um cavalo, enuveceu mais ainda o rosto, lançando a nós com os olhos, raios que provavelmente seu papai Zeus o ensinara a lançar. Seu olhar transbordava raiva, e em sua cabeça ele provavelmente se perguntava, indignado, como estes rapazes ousavam zombar dele, logo dele, uma figura tão temida, capaz de amedrontar até o mais intrépido dos homens. Não importava: quanto mais cara feia, maior o desejo de rir. No entanto, mesclada à raiva, cada vez mais seu rosto enorme demonstrava um vermelhidão, tingindo as maçãs da bochecha com um vermelho tão vermelho quanto o vermelho pode ser, enrubescendo levemente e não mais conseguindo se concentrar em sua raiva. Então o boçal encontrou o ápice da sua vergonha, pois todos no vagão seguiram nosso exemplo, entregando-se paulatinamente ao devaneio do riso a que nos submetíamos eu e meu amigo; começou com risadinhas baixas, tímidas, e logo todo o vagão se transformou numa orquestra, num coral de risos, às vezes uníssonos, às vezes desafinado, uma vez que toda a gente, com uma mão na barriga e a outra apontando o rosto do Hércules, riam como pessoas insanas, riam tanto que não continham o peso do próprio corpo, perdendo a força, indo, autômatos, deitar no chão; rolavam, enquanto lágrimas de riso inundavam seus rostos tão contentes por terem um objeto que os fizesse rir como nunca antes riram. O bobo da corte, naquele momento, creio, tendo um revólver, explodiria seus próprios miolos, uma vez que nada seria mais terrível do que mais um segundo naquele vagão atormentador onde todos riam dele sem piedade.
      Agnóstico que sou, creio às vezes em brincadeiras do destino, e este, zombeteiro assumido que não perde a chance de troçar quando tem oportunidade, também foi contagiado: mandou-nos diretamente do Paraíso uma falha no trem à frente, atrasando a chegada da próxima estação, na qual, sendo ela ou não seu destino inicial, nosso palhacinho desembarcaria, tamanha a vergonha que o acometia. Seu desespero se manifestava em cada célula daqueles músculos imensos, o rosto de menino mal de outrora desaparecera, dando espaço agora a uma expressão de "estou implorando, parem!", com os olhos substituindo os raios que lançara por tempestade de lágrimas . Mas nós não parávamos, que nos importava o desalento dele? Ríamos mesmo daquele grosseirão, e com vontade, eu rolava no chão, socando minha própria barriga tentando aliviar o diafragma enrijecido que queimava devido meu profundo gargalhar. A besta caiu de joelhos, tremelicando-se por inteiro, derramando lágrimas por motivos tão diferentes dos nossos. Escondia com as mãos o rosto, desejava sumir, ser abduzido, teletransportado, morrer.
      Engatinhou, e agora quadrúpede, fez jus à aparência, tentando desviar dos indicadores apontados em seu rosto lacrimoso. Fugia e berrava como um porco no abate, mas seus gritos eram fracos diante de tanto riso, e ninguém escutava nada, apenas riam daquele comediante tão hábil e talentoso em sua arte de fazer rir. Chegou sufocando até o fim do vagão, e, encolhido no canto, tapou os ouvidos com uma força que quase esmagou a própria cabeça: talvez fosse esse seu desejo. Parecia uma criaturinha impotente, pequenina, uma formiguinha indefesa diante da iminência da morte transfigurada em sola de sapato.
      Todos se aproximaram do brutamontes para rir mais forte e mais de perto. Todos queriam ver o quanto mais próximo pudessem o humilhado comediante, que trazia em sua face as cores da piada mais engraçada do infinito universo.
      Mas, depois de tanto riso – creio que todos ali nunca riram nem viriam a rir novamente como riram naquele domingo ensolarado –, a besta passou a deixar de ser besta, e, já se resignando, secou as lágrimas da vergonha, e ainda parcialmente lacrimoso, um sorriso começou a nascer em seus lábios. Como conosco ocorrera, gradativamente, o espírito risonho fermentava em seu interior. Não mais escondia o rosto, fitava-nos agora com outro olhar, o olhar de alguém que caíra em si. Tão mais cedo quanto esperávamos, o homem passou a rir como ríamos dele, dizendo com voz entrecortada pela gargalhada: "Ora, aonde eu estava com a cabeça?! Tolo que fui!", e desabava em risadas sinceras. Nós ríamos ainda, ríamos todos juntos, agora, o mais contagioso dos risos, e quando parecíamos ter contido o riso numa pausa, contemplávamos uns aos outros, rindo novamente e com mais força tudo o quanto antes havíamos rido; os olhos umedecidos ferviam. O rapaz, agora curado, ainda gargalhando, pôs-se a levantar, e nós pegamos em seu braço e o ajudamos a fazê-lo. Ficamos ainda com aquele riso por muito tempo entalado na garganta, pois era muita gargalhada para sair de uma só vez; algumas, inclusive, escapavam guturais.
       O trem voltara a andar, todos se levantaram, secaram suas lágrimas, e voltaram à Terra. Algumas risadinhas ainda estavam flutuando vivas no ar, e o homem já suspirava sereno, parecia leve, bem mais leve; também parecia agora mais gente do que animal. Chegando na próxima estação, ele respirou fundo, fitou-nos a todos, dessa vez ternamente, e, acenando, da sua boca escapou: "Obrigado, pessoal, tenham um bom dia". Sorrimos para ele, cada um respondeu a sua maneira, mas o que todos queriam lhe dizer era: "Fique em paz, companheiro. Tenha um bom dia".
   
  Ele foi embora, e, recompostos do riso, nós ficamos, eu e meu amigo, aguardando nossa vez de desembarcar.


GUI RODRIGUES

28 de set. de 2014

MENINOS E MOLEQUES


Sou um menino que não aprendeu a amar,
Por isso, vaga como zumbi dos sentimentos,
Sou um menino que não viveu
Passou e a vida não viu,
Esperança de óculos,
Lembrança muda sem nascer no coração,
Poeta sem destino, perigoso artífice do nada
Senhor necessário das solidões.

"Senhor eu não sei rezar!"

Nem por mim, nem pelos outros,
Choro uma lágrima fria, desesperançada
Comprida..., cumprida a sós como as pedras
Que rolam sós pelos caminhos , perdidos...
Nas romarias das latas cegas nas cabeças
Das Marias Madalenas nas fontes dos desejos
Ensejos de rimas e versos sem destinos-desatinos.

"Senhor eu não sei rezar!"

As aparências enganam, nas aparências
As poeiras nem sempre são desérticas,
Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira,
Na neve das entranhas, estranhas formas do nada
Nunca percebi o fogo do outono brilhar no verão da primavera.
Mesmo tendo carregado todo o mel do meu corpo,
Mesmo tendo perdido meu tempo com você, solidão
Mesmo tendo, um dia, lavado o chão com lágrimas,
Não tenho olhos para te ver, amiga distância
Não consigo te abraçar, amigo afastamento
Sou o longe do corpo, do meu sonho, da fascinação.

"Senhor eu não sei rezar!"

Não sei ser poeta, poesia.
Não sei ser menino do amor,
Não lavei o travesseiro para não perder teu cheiro perdigueiro
No mar não sei nadar, mas estou sem companhia.
Não tenho a vida completa
Não sou Cecília, não sei ser poeta
Não soube fingir, nem sentir as dores das pessoas

Não soube fazer da vida um encontro
Não conheço o desencontro, portanto, da vida.
Não conheço a cor da saudade
Porque na verdade nunca tive a certeza do céu azul e a folha verde.
Sou a poeira das estradas das cidadezinhas quaisquer
Como Drummond, bebo Vinícius, fumo Bandeira e cheiro Chico.


®Sérgio Souza

27 de set. de 2014

RENÚNCIA INDIGESTA!



Chega, hoje estou renunciando a tudo que um dia acreditei, chega! Fim á hipocrisia dos poderosos, fim ao deleite da clerezia, basta aos desmandos da burguesia, estou farto do lirismo namorador dos gabinetes do planalto e do negro da Casa Branca, não vou mais compactuar com os senhores donos das verdades da fé, nem darei fé as justas injustiças dos justos, não vou reconhecer o céus nem darei louas aos infernos, nem o céu nem ao mar, muito embora queira me cobrir com teu manto mais azul e me embalar no verde azulado das águas dos oceanos que afogaram minhas esperanças perdidas no infinito firmamento das minhas credulidades.
Basta para a poesia falsa que me namorou, deitou comigo e não me satisfez, basta para você paixão nova, embora seja vontade do inédito, porque nasceu comprometida com as falácias das sociedade, basta para você paixão velha, eternizada nas letras das canções não entoadas nas madrugadas frias e desprezada nas noites de verão, não verão mais minhas lágrimas por vocês, pois hoje estou renunciando a tudo e a todos que um dia me aplaudiram nos discursos das consciências, adeus ciência que um dia me disse homem, mas homens não se forjam em tubos de ensaio, não se inseminam as pessoas longe da ideologia, a qual me cortejou, porém feito mulher de esquina me abandonou pela propina mas gorda, parei com o coração que entreguei á prosa do dia a dia, enfartado que está das indiosicrasias que a humanidade criou, enfartado que está do amor verdadeiro que entreguei e não recebi, de você que me fez ambíguo diante das regras sociais, e hoje nem sei da minha carteira de motorista, não quero perguntas e abomino as respostas forjadas e iguais dos balcões de anúncios dos jornais ou telas de televisão, cansei de ver o mundo pela fresta de janela que me permitiram, cansei de apanhar na avenida Paulista ou de ser chacota nos bistrôs de Paris, a vontade é de explodir torres, as torres da minhas verdades inócuas, que tentei te explicar, mas você esteve preocupados com os corredores dos shopping´s.
Hoje renuncio ao puro sentimento que Bandeira cantou e roubo sua passagem para Pasárgada, porque lá nem passarei perto rei, nem quero ninguém na cama que escolherei, não passarei a vida a limpo, Drummond, porque nada tenho, a mais, para dizer, não escolherei heróis porque já não me pareço com os nossos pais, cansei!
Renuncio a você, meu amor, porque será difícil viver na certeza da perda, amo, mas nego; renuncio a você, ódio diário, porque perdi as forças para lutar, chega! Não lançarei impropérios, como tantos, porque não s quero ver mais, renuncio com clareza de ideias e falência de ideais, não quero mais compactuar com as mortes de África, nem com os terremotos do Haiti, não serei avalista dos descalabros de Alá, nem recolherei o sangue na Cruz, nem entoarei mantras a Buda ou Krishina, só sei, que o quê sei, é que vou partir sem deixar lembranças, não quero levá-las também junto á poeira de meus sapatos, pois tudo fiz para amar, e você resistiu, tudo fiz para mudar, e você resistiu, tudo fiz para esclarecer, e você resistiu, cansei! Hoje vou pela porta dos fundos da eternidade, pois tenho vergonha de sair pela porta pela qual cheguei, porque não me disseram nada, me negaram tudo, e passei meu tempo longe dos banquete dos poderosos, pois que morram da diarreia do que os empanturrou sempre, o poder e o dinheiro.
Adeus último para você, antes que me desvaneça na fumaça do último cigarro, levando as tripas do último rei amarradas á corda que enforcou o último representante dos céus.
P.S.: Não deixo testamento, só vazio para você guardar o meu esquecimento, também parto nu, conforme cheguei, pois as roupas só me serviram para me esconder de mim mesmo!

SÉRGIO SOUZA

Jornadas

Conhecedor que sou de mim
nunca deixei de me dizer
o que desconheço na minha alma.
As novidades interiores
guardadas no canto desta sala
me apresentam novos sabores.
Devoro-os ávido,
engulo-os rápido,
e por fim a garganta me entala.
Solto em meu firmamento,
firmo-me ao meu momento;
prendo-me à liberdade
que me escraviza dentro de mim.
Tenho saudade do que fui,
mas tenho vontade do devir.
Sou o agora,
sou diferente
do que fui outrora.
A minha hora
não é a de antigamente.
É que o que se sente
não se demora,
e tão de repente
vai-se embora.
E eu fico na saudade de mim,
com vontade de mim,
vivendo em alguém que penso ser.
Pulo o muro,
deslizo,
me seguro,
não sei aonde piso,
caminho,
está tudo escuro.
Sozinho
sinto o perfume puro
da terra fértil e molhada
onde nova semente será plantada.
Um dia após o outro,
e eu já não sou o mesmo.
Navego pelo mar,
viajo pelo ar,
fecho os olhos
e passeio pelo meu lar.
Ardo por dentro,
mas estou quieto,
chego a algum lugar
com o coração no centro;
perdi-me: hei eu de voltar?
Mergulho breu a dentro,
acendo-me de minha luz:
é na parte mais escura que eu entro,
é o desconhecido que me seduz.
Nunca desisti de me encontrar,
nunca desisti de me perder:
perco-me para me achar,
acho-me para me ser.

GUI RODRIGUES