Deveria neste momento estar escrevendo um ensaio, mas prefiro deixa-lo pela metade, na espera. Caro senhor das Violetas, neste sábado chuvoso, com a vontade de escrever e ao mesmo tempo um gosto travoso de preguiça, uma televisão a papagaiar solitária, a janela aberta e uma cachorrinha sempre sorridente e solicita, parece um cenário de horror e solidão, mas não é, esgueirei-me pela estante para encontrar companhia aprazível e por lá encontrei um punhado de papéis impressos a tagarelar no seu silêncio de mensagem cifrada. Tem uma hora que o tempo acaba na sua infinitude, diz um filósofo alemão qualquer, ou silêncio é a gente mesmo demais, numa filosofia que vem de Cordisburgo.
Mas nada há de encanto nestes pensamentos, muito mais é caminhar pela chuva fina pensando no ser, no sentir e no existir, mas falta-me coragem para tanto, a friagem me faz covarde em deixar o sofá, porém de induz à coragem de pensar naquele texto que ensaio o ensaio e não escrevo.
A televisão mostra um filme água com açúcar, daqueles que se acostumou a ver nas tardes modorrentas dos sábados ou domingos, durante a semana não ouso dizer, mas algo me chama a atenção, quando o personagem central declara ser uma moeda, que foi cortada de uma chapa, cunhada e chanfrada, o valor... bem este pouco importa, já que o importante é ser moeda. Fiquei com isto aqui na cabeça, que somos como moedas, feitas, marcadas e adestradas, se me permite a comparação estapafúrdia, senhor da rua das violetas, passadas de mão em mão e com valor previamente estabelecido, valor nominal, pois que valor dá-se a uma moeda, senão o recebido, além de ser considerada troco. Uma vez baleado na guerra ele diz que a moeda agora apresenta dois furos, logo perdeu o valor.
Se por um lado isto se consuma, por outro ganhou valor histórico, mas meu caro senhor, valor histórico é mera moeda de aposentado por uma invalidez qualquer que as notas, muito mais bem vistas, de valores maiores e peso ínfimo acaba por impor à nefanda circulação.
Quanta bobagem, dirá o senhor, e eu hei de reconhecer sua veracidade. Ora! Encomoda-lo com um discurso tão insustentável como a leveza do ser.
Verdade é que parece que as tais personagens tiraram folga neste sábado de dezembro, nenhuma quer conversar comigo, a não ser para reclamar disto ou daquilo e ai fico eu a vagar minha indigência literária pelas linhas obscuras do papel, me esgueirando por entre pontos e vírgulas na insana tentativa de quer dizer.
Aliás, saber dizer é uma arte, já disse alguém em tempos idos e vividos, coisa que não chego nem perto nesta barafunda de ideias jogadas, mas uma coisa tenho a lucidez necessária para explanar, o quanto é difícil querer entender o mundo em que sobrevivemos, seja pelas pessoas em si ou seja por seus atos em "ré"; sim, não errei no duplo sentido que grafei, pois quanto mais para frente se anda, menos sinto a evolução, seremos seres no futuro como ou pior, em termos de evolução mental, que os senhores das cavernas, com a bizarra moda de um eletrônico qualquer na mão, e se me fosse, ainda, permitido imprimir uma viagem surrealista, gostaria de ver este arrogante HOMO SAPIENS SAPIENS em confronto direto com aqueles; o SAPIENS a arrulhar que chegou aos confins do universo e aquele, do alto da sua simplicidade carvérnica, olhando fundo e seguro
em seus olhos e dizendo: "eu inventei a roda".
O homem de tempos muito passado não teve está ideia de posteridade histórica, pois senão teria patenteado seu invento, e aí babau relativismo.
Perdoe este pobre homem de letras, pois afinal as palavras foram para serem ditas e as minhas não cabem dentro da boca.
Um forte abraço deste,
Senhor da rua Cidade de Castro.
SÉRGIO SOUZA
Talvez seja uma resposta tardia, que demorou para me ocorrer. É que não me aflige agora nenhum pensamento, e este é o melhor momento para se dizer alguma coisa. Já reparou naquela sensação de procura, de busca incessante por entre as profundezas de nosso interior, com o intuito de encontrar algum objeto, algo velho que nos dê uma sensação de coisa nova, ou, como diz você, meu bom senhor da rua Cidade de Castro, Donec Mei? É interessante que os maiores tesouros guardados dentro da gente estão sempre nas partes menos acessíveis, cabe-nos, portanto, revirar-nos por completo para encontrá-lo, porque temos, sem perceber, um preciosismo tão grande com nossos pertences valiosos, que acabamos por esconde-los de nós mesmos num relicário trancado que mal sabemos o endereço.
É estranho que passei hoje o dia a ver o mundo por uma janelinha estreita. Fiquei pensando em Fernando Pessoa, na verdade ele deve ter pensado em mim, porque surgiu um certo Álvaro de Campos – o senhor como homem das letras deve conhecê-lo – e me disse que precisava escrever, então pediu emprestada minha memória e teceu nela algumas lembranças. Acho que me recordo dos seus versos:
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Acho que sonhar já está de bom tamanho. Que importa ser, se não houver toda a magia e o encanto do sonho, isto é, se não houver aquela espécie de natureza imaginativa que nos preenche, dando a nós, em meio aos absurdos mundanos, uma vitalidade profunda e arrebatadora, que nos fornece toda a nossa essência e cede-nos uma visão cega e atenta do que se passa do lado de fora? Os cegos me inspiram: eles veem o mundo através da sensibilidade.
Sabe, meu caro senhor, será que um poeta imagina, quando a poesia usa seu corpo como instrumento de escrita, que de alguma forma o que ele está escrevendo pode ter sentido para alguém tão distante, seja hoje ou daqui a uma porção de anos? Digo isso porque o mundo é bem estranho... Há pessoas que existem, mas para outras pessoas não existem, e quem já não existe mais existe para outra pessoa. Explico-me: imagine o senhor que neste exato momento alguém vaga pela Avenida Paulista, alguém que nunca vimos e nunca veremos. Imaginou? Então, para nós essa pessoa não existe, embora exista; nunca a vimos, não sabemos de sua existência e por isso não a reconhecemos. Agora, peço que imagine o bom Álvaro de Campos: ele não existe, ele um dia existiu em alguém que também já não existe mais, entretanto, para nós, ele existe mais do que quem verdadeiramente existe! Como o mundo é louco, não?
Quando você me fala sobre a fuga das personagens que hoje não quiseram ter com a sua inspiração, penso que às vezes são os escritores que fogem das suas personagens. Sol é um claro exemplo desse abandono por parte do escritor, que, temendo a conduta dessa mulher, procurou abster-se pelo menos por um momento da história. Mas confesso que, às vezes, escrever dá-me uma boa nostalgia das brincadeiras de infância, quando eu corria de um lado para o outro, naquela típica brincadeira simples e divertida que é o pega-pega. Talvez nos ocorre algumas vezes de não sermos tão espertos e hábeis quanto a personagem, e por isso ela nos escapa.
Neste dia chuvoso, senhor da rua Cidade de Castro, tudo está vazio, menos eu. É que aprendi a preencher o vazio de sempre com o próprio vazio. Encontro-me no vazio. O coração humano tem muito disso.
Aqui, senhor, as violetas das ruas estão belas e molhadas, lambuzaram-se inteiras de chuva e saciaram a sede; uma nuvem inteira passou por um processo imenso somente para dar de beber a essas pequeninas perfumadas.
Mas, caro senhor, estas são só palavras, carregadas de preguiça e com sentido apenas para quem tiver algo dentro de si, justamente por elas não terem nada a dizer. São só palavras mesmo. Entretanto, lembrando Clarice, nós sabemos de muita coisa, mais do que imaginamos saber, acontece que nos fazemos de sonsos.
Um forte abraço deste,
Senhor da Rua das Violetas.
GUI RODRIGUES
Nenhum comentário:
Postar um comentário