O
carro policial irrompe aos berros de sirene pela Avenida Central congestionada,
elegante e espremida entre prédios imponentes e sem cerimônias sobe na calçada
e Moura, um agente policial, abre caminho dentre os curiosos que se aglomeram
na porta da estação do metrô, descendo as escadarias com rapidez que não
combinam com seus anos de idade, segundado por Matias, um jovem que ainda
estagia na policia; na plataforma lá estava um corpo banhado em sangue vitima de
um tiro certeiro e único disparado por outro rapaz, que segundo testemunhas era
muito parecido com a vitima, alguns chegavam a afirmar que poderia até ser um “auto
tiro”. Não tarda chegarem os fotógrafos dos jornais e câmeras das emissoras de
televisão, Matias toma o pulso do atingido e declara que ainda existe um fio de
vida, Moura aciona, pelo telefone celular, uma ambulância, que tal como a
polícia rasga a Avenida Central com a rapidez de um raio, Moura entrega a ação
aos paramédicos que com todo cuidado preparam a vítima para o transporte
emergencial. Passado o instante primeiro fica a dúvida, quem teria desferido o
tiro neste rapaz, que Matias identificara por sua identidade chamar-se Eduardo
Novaes e ter 25 anos, o que de tão grave fez este moço para ser tão brutalmente
alvejado diante de todos numa estação do metrô? Essa era dúvida dos atônitos
que presenciaram o fato. Após os trabalhos de praxe para averiguações e
investigações, Moura interroga o chefe da estação que menciona outro rapaz,
praticamente da mesma idade que desaparecera na multidão subindo a escada
rolante na contramão, afirmara ainda que as aparências eram semelhantes, ambos,
vítima e agressor possuíam cabelos pretos lisos, pele morena clara, trajando
camisa branca e calças jeans, um detalhe interessante, ambos trajavam roupas
semelhantes, a diferença estava na camiseta branca com estampa de uma banda
internacional, porém de fundo branco; hoje, meu caro senhor Lauro, diz o agente
Carlos Moura, as pessoas se vestem todas iguais, parece que saíram todos da
mesma fábrica ou compraram na mesma loja; acho isso uma falta de personalidade,
está todo mundo com a mesma cara. No caminho de volta para a chefatura de
polícia o silêncio predomina dentro da viatura, ambos os agentes conversam com
suas dúvidas, até que Matias quebra este silêncio perguntando para Moura, por
qual motivo alguém cometeria um ato impensado desses colocando em risco a vida
de tanta gente, a que este praticamente balbucia uma resposta inaudível fazendo
com que Matias se recolha ao seu próprio silêncio. A ambulância chega ao pátio
do hospital de clínicas, que não era longe do local do fato, médicos avisados
já a esperava para uma intervenção para extração da bala, que mais tarde se
soube alojara-se no pulmão direito e passara a milímetros do coração. Eduardo
agora era conduzido para a U.T.I. em estado grave inspirando todo cuidado
disponível. Já na chefatura Moura adentra sua sala dirigindo-se à mesa do café,
tomou-o de um único gole, acendeu seu cigarro, companheiro de todas as horas,
acomodou-se na cadeira, soltou um tufo de fumaça mantendo seu semblante
fechado, com ar de indignação, Matias sentado observava as ações do chefe,
Matias daria a vida para saber o que ia pela cabeça grisalha de Moura, que
estava a um dia da sua aposentadoria depois de quarenta anos de serviços
prestados, tantos plantões, muitas noites de pizzas frias, de casos insondáveis
chegava ao fim, quando de repente surge mais um enigma na sua frente: um
insondável tiro na estação do metrô. Sem dirigir palavras apanha seu sobretudo
e seu inseparável chapéu panamá e deixa a chefatura em direção ao pátio onde
estacionara seu velho carro popular dos anos 60, deixando Matias confuso e
curioso sentado em sua mesa de estagiário. No caminho de sua casa, na zona
leste da cidade, pensava na aposentadoria, nos tempos bons, dos amigos que
tombaram no cumprimento do dever, no sonho de uma chácara onde criaria galinhas
e muitos cães, lembrou-se de Madalena, a meretriz da Rua das Flores, que
prendera várias vezes por desacato e desordem quando prostituição era chamada
de vida fácil, uma carreira de quarenta anos passa por sua cabeça, mas... quem
dera o tiro do metrô? E por quê? Seria uma covardia aposentar-se agora sem
desvendar este mistério, decidiu, por um instante, deixar tudo para lá, mas
voltou atrás, iria resolver só este caso e aí sim, poderia criar suas galinhas.
Sentia-se envelhecido, cansado, já cometera bobagens por conta do cansaço, como
prender alguém antes do delito cometido, estava desenredando. A paisagem, e o
ar fresco suaviza por definitivo sua alma, até que o veículo empaca,
esquecera-se de colocar gasolina, era comum o ato falho, empurra-o até o meio
fio e olha para avistar um posto, admira a paisagem da cidade grande, que de
tão grande já não o cabe mais, quando seus olhos param no alto de um morro, uma
casinha simples, caiada, lembrava-se dos dias que por ali passou e sem querer
desviava para ver Laura, sim, Laura; por onde andaria Laura, lá se vão 25 anos
desde então não a vira mais, era uma dançarina da boate La Coste, ficava ali na
rua da Figueira, lugar não muito bem frequentado, era uma zona de meretrício,
mas Laura era linda com seus olhos esverdeados, ancas suaves, muitas fezes
passara por ali para ter com ela, viera com Laura um momento de oásis nesta vida
incompleta de um agente de polícia, vinte e cinco anos... Por onde andaria?
Como estaria agora depois de um quarto de século? Tinha na época vinte e três
anos de uma vida irregular, viera do interior, fora posta para fora de casa
depois que o pai descobrira que fora deflorada pelo capataz da fazenda com quem
mantinha um morno namoro, tabus de uma época que ficaram vinte cinco anos
atrás, hoje não há meninas virgens ou ninguém mais põe filha na rua por isso.
Moura distraiu-se retornando a um passado distante feliz e conflitante, era
viúvo, a lembrança deste fato, deste adultério remetia-o também ao cemitério,
fora um casamento sem felicidade, casara sem amor, sem desejo, Lúcia era uma
mulher fria, distante, desinteressante, conta nos dedos os momentos de intimidade
com ela, mas Laura não, era quente fogosa, amante, verdadeira, sabia ser mulher
sob os lençóis. Puxou do fundo da alma um golpe de ar, expirou o ar da saudade
naquela fria manhã de solidão enevoada; voltou-se para o lado e percebera que
ali parou para buscar gasolina, caminha. Na chefatura as coisas prosseguem como
se o mundo estivesse encarcerado, uma mulher presa por discussão com a vizinha
e o marido detido por espancar a esposa, rotina triste para um estagiário como
Matias, porém no infinito do seu interior pensa sobre o delito da quase manhã
no metrô e sobre o enigma que reveste a figura de Moura, percebeu que ele
tratou o fato com a frieza de um iceberg, com o profissionalismo quase
automático, não se intimidou com o choro das senhoras em desespero, nem com o
alvoroço dos homens, nem com a atitude precisa dos paramédicos, que alma teria
Moura, o que aqueles olhos cansados teriam visto ao longo da carreira, pensava
que um dia queria ser como ele, agente que jamais perdera uma causa, sempre resolvera
seus delitos. Depois de alguns dias com a alma praticamente entregue ao criador
Eduardo parece que vai sair do como induzido em que fora submetido pelos
médicos, afinal não seria desta vez que deixaria a vida para virar estatística
dentre os mortos, mas não escapara da estatística dentre os sobreviventes.
Porém um fato intrigava enfermeiras e médicos, quem seria aquela mulher que não
mostrava o rosto que o visitou por duas vezes nestes últimos sete dias em que
esteve na U.T.I.? Misteriosa e calada parou, sempre que lá esteve, por no
mínimo umas duas horas diante do vidro olhando fixa, um capuz enorme cobria-lhe
a face, trazia na mão um rosário de contas e passava a rezar baixinho,
petrificada, tal como uma estátua, depois saía de cabeça baixa, descia as
escadarias e sumia ao ganhar a rua; seria, quem sabe, uma dessas freiras
caridosas que percorrerem hospitais intercedendo, com suas orações, pelos
enfermos? Eduardo, depois se soube, era um jovem ator, cursara arte dramática
numa universidade de outro estado, fizera dança também, era, quando se pode
ver, um rapaz de traços suaves e delicados, gentil, educado, fizera até uma
semana antes do tiro, parte de uma peça em cartaz na cidade, mas que terminara
sua temporada; soube-se disso quando Emanuel visitou-o no hospital, pareciam
amigos, pois este lamentou bastante o fato ocorrido e mais uma vez a pergunta
cruzou os ares do ambiente sem resposta, quem fizera isso? Afinal Eduardo
parecia inofensivo, nunca se soube de algo que o comprometesse, nunca se falou de
qualquer envolvimento sentimental, aliás, estranhava-se muito, pois com os
traços de Apolo, era assediado, mas sempre se mostrou distante, Emanuel talvez
tivesse mais detalhes, pois eram quase que inseparáveis, que segredos teria ele
guardado sobre Eduardo. Naquela noite, após voltar do hospital, Emanuel ligou
para Alexandre e disse que o amigo ator estava se recuperando bem, Alexandre do
alto de sua arrogância não pareceu importar-se muito com o fato, limitou-se a
um: “tanto melhor, assim você fica menos agitado.” Alexandre era um alto
funcionário de um banco na avenida central, casado com Emília, não tinham
filhos, ele não suportava crianças, chegara a cursar economia, mas se formara
em administração de empresas, sempre pareceu incompleto, irritadiço, mas
Emanuel parecia saber lidar com isso, logo desligou o telefone depois de mais
uma ou duas palavras; sentou-se recostado no sofá com olhar fixo no teto e ali
ficou até dormitar. Eduardo, no seu leito de hospital teve algumas visões de
sua vida, recordou da infância sem mãe biológica, pois fora criado desde os
três anos por uma família de classe média na zona oeste da cidade, tivera
carinho, tivera estudo e compreensão, mas suas origens o intrigava, por que
seus pais o entregaram a esta família, da qual se afastou assim que concluiu o
curso de dança na Europa, há tempos deixara de visitá-los, o ferimento doía,
chamou a enfermeira, deram-lhe um sedativo, o pensamento vagou, pensou ter
visto uma mulher que o olhava fixa, não era sua mãe adotiva, mas era noite, as
visitas acabaram às quinze horas, delírio certamente, mas ali estava estática
aquela figura, doce, suave, meiga, sem rosto, porém; não conseguia enxergar,
era certamente efeito do remédio.
Adormeceu.
O dia amanhecia; o sol rasgava o ventre da natureza manchando o céu de vermelho
alaranjado num eterno parto da existência, Moura levantou-se depois de passar
uma noite quase toda em claro pensando em Laura, repassando vinte cinco anos de
vida, relembrava-se do dia que a encontrou na boate, ofereceu-lhe uma carona e
acabou com ela num quarto de um hotelzinho barato da Rua da Figueira e assim
transcorreram-se muitos encontros, tornaram-se amantes, era uma mulher
diferente, amante vigorosa, consciente de sua posição social, foram muitos os
encontros, até que depois de uma noite linda de prática de amor, acordou
abraçado à solidão, Laura levantara-se cedo e sumira como se esvai a fumaça no
ar, procurou por dias, meses, vinte cinco anos, por onde andará Laura? É a
pergunta que não tem resposta para este investigador implacável, resolvera
tantos casos indecifráveis, mas não resolveu o seu próprio, alimentou o seu cão
de estimação e rumou para chefatura de polícia, pensou pelo caminho de
congestionamentos tão longos quanto os vinte cinco anos de busca, passou pelo morro
da casinha branca, caiada, e prometeu a si mesmo que depois do expediente
passaria lá, quem sabe lá não estaria Laura. Na chefatura Matias se antecipara
em um caso de latrocínio, meliante perigoso assustava a população de um
cortiço, Matias, sempre fiel, recebera a denúncia e já organizara a diligência,
Moura adentra a sala com o seu ar imperial e já se posiciona para comandar mais
uma busca, ajeita o revólver na cintura, coloca o distintivo no peito, chama
Matias com um aceno e desce as escadarias e apossando-se do banco do lado do
motorista que não por acaso era Matias. O local era estarrecedor, sombrio, mas
ali amalocara-se um bandido perigoso e fazia os moradores seus reféns, agora o
acusavam de ter matado e roubado o salário de um dos muitos pais de família ali
existentes. Moura olha da rua o cortiço como quem fareja tal um perdigueiro a
caça, sem palavras apontou para uma casa de cômodos com o cadeado amostra,
Matias retrucou: “Chefe aquela porta está trancada por fora, não pode ter
alguém ali.” Moura não lhe deu ouvido e subiu como um raio a escadaria
encardida do cortiço, percebera que havia luz pela soleira, gritou: “Abra!” A
luz se apagou, tornou a intimar, sem resposta; meteu o pé na velha e
deteriorada porta que veio abaixo sem muito esforço, mas assim que ela caiu
dois estampidos foram ouvidos, Matias se abaixara, os moradores curiosos
sumiram, ao levantar a cabeça Matias percebe o chefe em pé a sua frente,
concluiu; o bandido morreu. Sem piedade Moura estourara o assassino e sem saber
libertara um garoto de uns cinco anos que ele tinha por refém, uma senhora
piedosa olhou fundo em seus olhos e perguntou-lhe: “Será que ele vai para o
céu?” Secamente Moura responde: “Por mim já foi!” Desceu a escadaria como quem
conta os degraus, acendeu um cigarro, sentou na viatura, Matias incrédulo o
segue à distância. No caminho de volta para a chefatura, Matias o indaga sobre
como descobrira o quarto certo do bandido, a resposta foi o sempre silêncio que
rodeava aquele homem de meia idade e que se orgulhava dos tantos anos
emprestados à policia. Sua cabeça era um mistério. Resolvido o caso já pensava
em outra coisa, no intrigante caso do metrô, quem seria o atirador? Por qual
motivo o fizera? Refez o caminho das escadarias mais uma vez, verificou a
angulação do tiro, revirou a cena do atentado por mais de três vezes, seu faro
parecia falhar neste caso, desvendara casos mais difíceis, como o da joalheria
da Praça da Matriz, abriu um leve sorriso, eram profissionais. Resolveu visitar
Eduardo no hospital, melhor interrogar; ao adentrar o quarto sentiu algo como
um repuxo no peito, as mãos frias, seu olhar cruzou com o do garoto, mas ele
jamais fraquejaria em ação e desfechou uma pergunta: “Tem ideia de quem fez
isso com você?” Diante da reposta negativa continuou; sabemos que mora na Rua
da Consolidação, a metros da estação onde foi alvejado, num apartamento de dois
quartos, é só e que trabalha como ator e dançarino: “tem namorada?” “Não.”
Nunca fora visto com alguém, nunca apresentara nenhuma companhia afetiva, talvez
Emanuel soubesse mais sobre esta vida misteriosa, Moura sai do hospital com
mais dúvidas do que entrara uma certeza, porém ele tinha, de que desvendaria o
caso. Emanuel era seu vizinho do andar de cima, conhecera Eduardo do subir e
descer dos elevadores e foram travando amizade até tornarem-se inseparáveis.
Era um rapaz de uns vinte cinco anos, alto, magro, negro, como Moura, formado
em direito, mas tinha uma pequena rede de lanchonetes em médias livrarias da
cidade, tinha em Alexandre um grande amigo, mas estranhava o fato deste manter
um apartamento alugado no andar de baixo, nunca o convidara para visita-lo lá,
e pedira que nunca comentasse com sua esposa o fato, Emanuel estranhou, mas
manteve o segredo, verdade é que passava horas lá dentro após o expediente,
nunca vira entrar ali ninguém acompanhando Alexandre, não podia ser um
apartamento de encontros, certo que Alexandre não gostava de Eduardo, embora
fossem vizinhos de parede, mas nunca se encontravam, pois Eduardo era notívago
e Alexandre era o senhor do dia, eram sol e lua, numa dessas comparações
poéticas. Moura levantara todos estes dados, pusera seu fiel estagiário para
trabalhar, o que guardaria Alexandre no apartamento clandestino? Talvez fosse
um dos chefes do tráfico de heroína, que a esta época grassava na cidade,
cativeiro para sequestrado? Moura conseguiu um mandato para verificar o imóvel
e o fizera, mas nada encontrou; tudo perfeito a não ser o fato de que lá só
tinha uma cama de casal, um fogão e um armário embutido, documentos da empresa
sobre uma mesa, mas arrumado com cuidado, embora nunca se vira nenhuma
faxineira por ali. Isso aumentava a curiosidade de Moura. O expediente
terminara naquele dia ensolarado, o agente se dirige para casa, é hora de
cumprir a promessa do início do dia, subir o morro e desvendar a casa caiada, o
ar se desanuvia só por pensar que poderá encontrar Laura, a mulher dos seus
sonhos, sentia-se refrescado só com a ideia, embora fosse um dia abafado,
percorre o caminho com a calma dos justos e o anseio dos amantes, ofegava
internamente, parou diante da casa que de perto tinha um aspecto triste, algo
com cheiro de passado, a cal que a revestia trazia a marca do tempo, o jardim
aparentava não ver um cuidado por vinte cinco anos, teve medo interior de ver o
que poderia encontrar ali, mas nada intimidava o velho Moura, vira coisa pior
ao longo da carreira, bateu palma forte como a saudade que o instigava, depois
de alguns longos minutos a porta rangeu em abertura como quem geme ao peso do
tempo, o fundo escuro, nada ali inspirava claridade, uma senhora de cabelos
desgrenhado, grisalho, gorda, pele enrugada, flácida, de um caminhar ledo como
tempo e voz pastosa, vestindo um largo vestido florido de pano vagabundo,
sorriu um sorriso de destes cariados, chinelos gastos com o tempo, calcanhares
rachados e cascudos, era uma visão de quem emerge da tumba depois de vinte
cinco anos de morta. Seria esta a linda Laura, pensou com seus botões o
experiente Moura. Calou-se diante do fato, a situação era constrangedora, era
essa a linda moça que conhecera anos atrás? O que acontecera para tamanha
transformação? Puxou o ar com a força de um náufrago, acertou o chapéu panamá
na cabeça e disparou certeiro como seus tiros de função: “Procuro por uma moça
chamada Laura, a senhora a conhece?” Tinha na memória a imagem singela da moça,
não este farrapo humano que se lhe apresentava. Podia sentir nos lábios o calor
da saudade de seus beijos, a mão suave deslizando sobre seu robe abarcando
coxas lisas e trêmulas de desejo, sonhou ousadias, parou no tempo feito um
colibri diante da flor, o pensamento vagou no tempo, era a mera sombra da
lembrança que o abraçava naquele instante; não, eu não sou a Laura, ela morreu
há vinte cinco anos. A resposta cruzou o ar como um raio cruza o céu em noite
de tempestade, feriu seu peito uma flecha disparada pelo tempo, as mãos
esfriaram, a cabeça girou com o vento frio que começa anunciando o entardecer,
petrificou-se, “a vida a maltratou muito, não resistiu às desventuras que a
vida lhe ofereceu e fraca entregou-se à bebida e ao cigarro e definhou, murchou
como um maracujá largado no campo, teve que entregar seus filhos ao mundo por
não poder criá-los, isto a lançou no fundo do poço e a beleza desmanchou-se,
homens desapareceram, fora lançada fora como o bagaço de uma laranja..” Via-se
então o que ninguém jamais vira, Moura fraquejar e uma lágrima, única,
solitária, triste, desce lentamente por sua face marcada por muitos momentos
difíceis. Passou a mão sobre a face espantando a tristeza, agradeceu e voltou
às costas para sair; “Quem é o senhor?” Indaga a sinistra figura, o agente
policial Moura, minha senhora; respondeu ainda de costas. Um silêncio de vinte
cinco anos tomou o instante, a casa caiada parecia receber certa iluminação,
“Quem?” Reforça a pergunta a mulher. “Moura, agente Moura”, reafirma. Espere um
instante, afirma a mulher, entre, já que veio procurá-la entre. Moura pensou,
mas aceitou com passos contados e acompanhou a velha senhora, adentra a soleira
da porta com o receio de quem adentra um túmulo em exumação, uma sala
trastejada de móveis envelhecidos, almofadas encardidas, um velho gato dormita
sobre a cristaleira vazia, tudo ali remete a um passado, cheiro, tempo, verte
passado, uma velha xícara descansa ao lado de um bule ainda morno, como a
situação, “Aceito um café?” Moura agradeceu, dispensou o mimo, seus olhos
pararam quando reparara que sobre a cristaleira jazia um retrato, o retrato do
passado, amarelado, em branco e preto, manchado pela umidade das goteiras, era
ela, Laura, ainda exuberante envolta em buás, dentro de um maiô justo, as
pernas à mostra, era ela linda, o coração pareceu renascer, o ar voltou,
rejuvenesceu vinte cinco anos, todo este tempo não pusera os olhos sequer numa
fotografia dela, era o êxtase. Moura, disse a mulher em voz quase inaudível, eu
sou a mulher da foto, Levantou-se num susto, como se me disse que ela morreu?
Indagação que já vem respondida negara ser Laura porque tinha vergonha do que
tinha se transformado, um farrapo, mas reconhecera o agente assim que abrira a
rangente porta, quisera se esconder, mas não aguentou e agora revela sua real
identidade, disse ter dois filhos gêmeos e que os entregara à roda dos
enjeitados da Santa Casa e que não tinha a menor ideia de por onde estariam,
disse que foi se acabando por conta disso, se prostituiu pelas avenidas, se
entregou a qualquer um como um pedaço de carne desprezada, se puniu, chorou e
agora doente esperava a morte ali na sua eterna sepultura, Moura estremeceu por
inteiro; mas Laura, porque não me procurou na chefatura, indaga. Não, você não
sabe o que é ser usada, e você também me usou, sumi naquela madrugada porque já
estava grávida, você não me assumiria, era casado, como deixar uma mulher
honesta por uma vadia, não Moura, não tinha eu este direito. O agente calou-se,
fechou os olhos por instantes, estendeu a mão para ela, sentiu-a trêmula, ao
abrir os olhos nota que esta está ofegante, chama por seu nome, porém sua
cabeça tomba; se desespera. “Laura!” Sem resposta, tomou o pulso,
imperceptível. Morreu, exclama incrédulo, esperou vinte cinco anos para morrer,
esperou para morrer segurando a mão do único homem que amou. Saiu fechando a
porta do passado atrás de si, chorou copiosamente como uma criança perdida de
sua mãe, sentia-se mais só do que nunca, blasfemou baixinho, trocou de mal com
Deus, descompôs-se. Chamou Matias na chefatura e anunciou a morte e disse que
tudo deveria ser colocado em sua conte, sim ele pagaria o funeral. Levantou-se
lentamente, mais uma vez olhou para cima, farejou o ar e prometeu à memória de
Laura que encontraria os dois meninos. Partiu.
Emanuel
ajeita Eduardo na cama, deixou o hospital, praticamente recuperado, mas ainda
inspira cuidados, ajudado por Mariana, que chegara minutos depois, Eduardo
agradece estar vivo, mas se indigna... Quem faria tal loucura e por que o
faria? Pensa em muitas hipóteses, mas não encontra resposta, mulher não poderia
ser mesmo porque já fora dito que era um rapaz, tivera muitos amigos e alguns
desafetos, era uma figura ambígua, tivera relacionamentos secretos, tanto com
moças quanto rapazes, mas que não vazara nunca, jamais fora pego ou flagrado em
atitude suspeita, não aparentava trejeitos, apesar da delicadeza das expressões
ou gestos, mas isso não era prova definitiva para tanto. Emanuel fora sempre a
pessoa mais próxima, que como um anjo sempre zelara por ele, Mariana, amiga
nova que conhecera em um dos espetáculos, era uma atriz iniciante que se
aproximara com a vontade de aprender, tinha por volta de vinte e dois anos,
bonita, mas não chamava sua atenção, mesmo quando Emanuel dissera que ela o
provocava, não, imaginação sua ela só quer aprender a representar. Emanuel
preparou para ele um caldo verde, leve como a prescrição médica, lembrou-se de
Alexandre, o vizinho estranho do apartamento do lado, sentiu-se incomodado.
Pareceu
ter ouvido barulho no apartamento ao lado, como se alguém removesse algo, agora
sozinho sentia-se bem, lembrou que se dirigia ao teatro no momento em que fora
atingido, pensou em algumas pessoas, nenhuma com perfil de assassino, nenhuma
com motivo para o gesto, Pierre, aquele francês simples, uma pessoa alegre,
dividiram uma apartamento por dezoito meses, até seu retorno ao Brasil, sentia
saudade, trocavam mensagens vez ou outra, prometera vir para cá, mas nunca se
concretizara, passou; lembranças são como nuvens vêm e vão ao sabor do vento,
passara momentos felizes, mas teve muita contrariedade, é a vida, sente calor,
descobre-se; agora quase nu livra-se do calor forte daquela tarde, ouve cair
algo, como uma cadeira, parece vir do apartamento do lado, chama Emanuel, sem
resposta; Mariana já havia se ido há algum tempo, estranho barulho, Emanuel,
com seu ar de mistério também deveria ter partido, estava só; lembrou-se do
vulto da mulher de preto no hospital, ninguém conseguiu desvendar o mistério,
não deixara qualquer vestígio, não conseguira ver o rosto da esguia figura.
Adormeceu. Três dias depois do ocorrido Moura volta para seu trabalho na
chefatura, silencioso e decido assume seu posto e ordena a Matias a fazer uma
diligência na casa de Eduardo, depois Emanuel e Alexandre, enfim queria uma
varredura no caso do Metrô, a imprensa até já se esquecera do fato e já não
abriam mais manchetes, Matias obedece, ele volta-se mais uma vez para seu café
pensando que tivera dois filhos com Laura e nunca soubera; imperdoável, não a
culpava, mas a si, sua omissão, sua irresponsabilidade, agora Laura é morta,
quer resgatar os filhos, conhecê-los, olhá-los nos olhos e dizer que é seu pai
biológico, enfrentar a indiferença e revolta, mas estava decidido. Vestiu o
velho sobretudo, arrumou o antigo panamá na cabeça e partiu. Sem destino,
simplesmente farejou o ar. Partiu. Agora recuperado, depois de longos dez dias
de repouso Eduardo volta às atividades, com pequenas dores, mas já era hora de
voltar, recebido com festa, por seus amigos, Mariana se desmancha em
gentilezas, fez um bolo com seu retrato, sentia-se em casa, evitara a estação
do metrô, fora de carro com Emanuel, comentara que ouvira barulho no
apartamento ao lado, Emanuel desconversou, implicância sua com o vizinho.
Alexandre que detestava a vizinhança mantinha aquele apartamento vizinho de
Eduardo, apurou Matias, teve um problema no banco anterior em que trabalhara
por desvio de dinheiro, estivera metido num esquema de lavagem de dinheiro, respondia
um inquérito por isso, era sempre irritadiço, pouco se relacionava com a
esposa, casara para parecer ser um homem responsável, traíra a mulher com uma
colega de serviço, sua família mantinha um segredo que o incomodava, sua mãe
nunca respondera com precisão as perguntas sobre seu nascimento, dos quatro
filhos ele era o mais moreno, cabelos negros e olhos castanhos bem escuros, de
um biotipo diferente dos demais, isso sempre o intrigara, pediu que fizessem um
exame de paternidade, negaram; discutira com o pai, ofendera os irmãos, na
adolescência se envolvera com maus elementos por conta dessa revolta, ostentava
uma vida de classe média alta, não ganhava mal, mas tinha uma necessidade
incrível de aparecer, ser notado, faria qualquer coisa para estar no foco das
atenções, desconfiava-se que tivera uma filha fora do casamento, fruto de um
relacionamento furtivo. Internava-se por horas perdidas naquele apartamento
quase vazio, nunca se soube o que lá fazia, jamais foi visto entrando com
alguém, logo não o mantinha para encontros, jamais dormiu lá, a não ser a noite
em que Eduardo chegara do hospital e ficara só. Emanuel viera do nordeste,
Salvador, era amigo de ambos, mas nunca fora visto entrando naquele
apartamento, era um misto de faz tudo, já havia tentado ser ator, fizera pontas
em novelas, pontas em peças; trabalhara como bancário no banco de Alexandre,
aliás, fora lá que iniciaram este relacionamento de amizade; solteiro, cuidava
com carinho extremado de Eduardo, Alexandre até fizera comentários maldosos,
Emanuel ruboresceu, mas não contestou, desconversou. Verdade que sempre fora
prestativo, ajudava os amigos indistintamente, a guia branca de Oxalá no
pescoço indicava isso, era adepto do candomblé, deixara seu Ylê para vir para
tentar a vida por aqui, foi um dos primeiros a visitar Eduardo no hospital,
vira certa tarde aquela mulher estranha descer as escadarias e ganhar a porta,
seguira por instantes, mas a perdeu de vista na multidão, intriga-se com o fato
de como uma mulher vestida com aquela capa sumira de sua vista, recorrera aos
búzios para desvendar o mistério, mas nunca revelou o que descobrira,
mantinha-se discreto como manda a regra de sua religião afro. Matias fizera um
relatório completo para Moura, pensou não ter deixado detalhe passar ao largo
da sua visão aguçada, pois sabia que o chefe era exigente e minucioso, só não
conseguira entrar no apartamento de Alexandre, mas pediria um mandado na
chefatura para poder vistoriá-lo. Enquanto isto Moura voltou à casa de Laura,
tudo ali cheirava passado, tinha mofo nas lembranças, soturna e sombria a casa
parecia sufocá-lo, passou a mão sobre os móveis envelhecidos pelo tempo, abriu
uma gaveta da cômoda, retirou de lá uns papeis amarelados e descobriu que Laura
tivera os gêmeos na Santa Casa e por lá mesmo os deixara na roda dos enjeitados
para adoção, descobriu também que um fora adotado por uma família do interior e
outro ficara na capital mesmo, até certo ponto da vida ela os acompanhara a
distância, mas a bebida e o desregro da vida a afastou deles, descobriu que ela
escrevera muitas cartas que nunca lhe foram entregues e nelas confessava seu
amor e sua degradação como ser humano, seus olhos lacrimejaram, sentiu-se o
pior dos humanos, mas agora nada podia fazer. Vasculhou o passado como quem
garimpa diamante e buscou as famílias que adotaram seus filhos, as encontrou e
percebeu que o melhor seria não incomodá-los, saberia de tudo por investigação
indireta. Naquela manhã resolvera que ele mesmo faria a diligência, poria fim
ao caso do metrô que desconfiava tinha a ver com o seu passado, achava estranha
a semelhança física entre Alexandre e Eduardo, a mesma idade, um era o reflexo
do outro, queria afastar esta dúvida, em suas pesquisas tudo se encaixava e a
seta do destino apontava aquela direção. Era uma tarde de sol morno, de brisa
fria, era uma tarde em que Eduardo ensaiava em seu apartamento passos de uma
dança para seu próximo musical, nunca se vestia para ensaiar em casa, não usava
o colant costumeiro, preferia ficar de cuecas para melhor elasticidade, ouvia
Bach para se acalmar deitado em sua ampla cama, um barulho o interrompe,
assusta-se; viera do apartamento ao lado, um som abafado de quem cai sobre
panos ecoou dentro do seu armário embutido, levantou-se, abriu o armário,
parecia tudo em ordem, voltou para seu leito, cochilou. Moura caminha lento por
entre o arvoredo da avenida, metido no seu sobretudo. Embaixo do seu panamá é
um só pensamento, fixo, determinado na busca dos filhos, na busca do autor do
atentado, mais decidido do que os que apuraram o tiro da Rua Toneleiros,
pensava no quebra-cabeça em que se transformara sua vida, justo ele cansado de
resolver o insolúvel era ao mesmo tempo procurador e procurado, procurado do
destino implacável, tirou do fundo dos seus pensamentos: “Tudo é precioso para
aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.” Seu jeito de homem rude,
calejado pelos anos de polícia, não deixava transparecer que era um homem
culto, sacara esta frase de Friedrich Nietzsche do fundo de suas noites em
claro lendo e filosofando sobre a vida e os homens. Moura era por si só um poço
de estranheza, um desses buracos em que nunca se chega ao fim, caminha, olha os
prédios, as antenas de televisão da avenida Central, dobrou a esquina e
adentrou a Rua da Consolidação, caminhou mais quinhentos metros e estava diante
do prédio de Eduardo, começaria por ali, enfrentaria a primeira das duas
supostas feras, pensou como seria recebida a notícia de que era seu suposto
filho perdido, parou; e farejou no mais tradicional estilo perdigueiro. Eduardo
inicia seu treino, dançava Debussy, saltava como uma garça ao iniciar um voo, o
som o inebriava, deixava o chão e viajava como um meteorito no espaço sem
gravidade, gestos largos, delicados. Naquele dia Alexandre não fora visto,
Emanuel ligara para ele, mas caiu na caixa postal, não fora visto no trabalho,
Emanuel queria conversar com ele sobre um assunto pessoal da conta bancária,
não estivera também na academia, que, se diga, raramente frequentava, enfim,
não fora visto. Mariana marcara com Eduardo para dançarem juntos, ela faria par
com ele na dança da peça, ficara esfuziante, pois nutria certa atração por ele,
achava-o bonito.
Ali,
diante do edifício, parado, olhando permanecia Moura, só como sempre viveu,
fechado em si como uma ostra, decidiu entrar. Alexandre, que não fora visto
naquele dia estava em seu apartamento, passara a noite ali, só. Figura
estranha, irritadiço, mas determinado em seus propósitos, admirava Eduardo como
artista, cometera uma invasão de privacidade ao criar uma parede falsa em seu
quarto que coincidia com o fundo do closet do vizinho e por ali o observava em
seu repouso, em sua intimidade, admirava-o, via sua própria realização, sempre
quisera ter habilidades artísticas, mas não as tinha e se via em Eduardo, em
cada gesto, em cada atitude, invejava seu corpo esguio, sua pele amorenada,
seus cabelos negros e olhos escuros, era seu reflexo, mas era visto com carinho
por amigos e colegas, o que não era bem o caso de Alexandre, nada simpático e
profundamente arrogante, Eduardo era leve, suave, de uma tez delicada,
expressão verdadeira, única, sabia ser ele uma pessoa aberta, sem preconceitos,
livre como os saltos que dava no ar. Naquele dia ficara em seu apartamento na
observação do vizinho, olhando-o pela sua passagem secreta que este sequer
imaginava. A cada passo novo extasiava-se, enchia-se de ódio ao mesmo tempo, a
inveja o corroía, a adrenalina o envenenava enquanto Eduardo bailava leve pelo
quarto distraído, com os olhos embotados de raiva e lágrimas, arromba a porta
do closet e ataca descontrolado Eduardo assustado, empurra-o junto à ampla
janela do apartamento de construção antiga, aos gritos de odeio você, odeio sua
dança, seu corpo perfeito, sua fala, Eduardo assustado nada entende. Moura na
calçada decide entrar, sem elevador, segue pela escadaria escura do velho
prédio, teria que subir cinco andares dos sete que compunham o edifício, para
chegar ao apartamento de Alexandre, ao chegar ao quarto andar ouviu gritos de
raiva e ódio que ecoavam pelos corredores, a velha pratica policial desperta
nele o perdigueiro que andava meio encolhido, acelerou o passo, chega ao
apartamento de Alexandre, a porta fechada, bate, não nota a companhia, bate
outra vez, os gritos agora pedem socorro, força a maçaneta e percebe a porta
destrancada, abre-a, adentra o espaço da sala, os ecos parecem vir do quarto,
dirige-se para ele e percebe a parede aberta e os alaridos mais fortes, quando
se prepara para entrar ouve um estampido, seco, contundente, um tiro. Correu,
atravessa a passagem secreta e se depara com um rapaz de cuecas estarrecido,
colado junto á janela e outro totalmente vestido, mas com a cabeça mergulhada
numa poça de sangue, a bala atingira em cheio sua têmpora, correu em socorro,
tomou-o nos baraços, gritou por seu nome, tomou a pulsação, expirou forte e
desanimado, levantou o olhar para Eduardo e disse com pesar: "morto, está
morto!” Deixou cair um par de lágrimas, pela terceira vez chorava sentido em
tão pouco espaço de tempo, apertou a cabeça de Alexandre junto ao peito deixando-as
cair em seu rosto inerte, voltou seu olhara para Eduardo ainda estarrecido,
assustado, trêmulo, vocês eram amantes? Perguntou sem rodeios. Não, respondeu
Eduardo, depois de uma longa pausa, e não tenho a menor ideia de quem atirou
nele, experiente, Moura não desconfiava do rapaz, jamais alguém em desvantagem
e nitidamente dominado pela vítima teria angulação para um tiro como aquele,
descartou a possibilidade. Percebeu abrir a porta da sala do apartamento de
Eduardo, era Emanuel que chegava para observar o treinamento com Mariana, por
isso deixara a porta destrancada, afinal Emanuel tinha acesso liberado, chamou
por Eduardo sem que obtivesse resposta, chamou outra vez já a caminho do
quarto, parou pasmo na porta ao se deparar com a cena, correu para Eduardo
abraçando-o e chorando a morte de Alexandre, como isto aconteceu? Indagou
olhando para aquele senhor que continuava ali inerte, sem palavras, porém seu
pensamento girava com a rapidez dos tufões, nem desvendara o caso do metrô e
outro tiro já o intrigava; assim não se aposentaria nunca, pior era ter o filho
que ele, já sabia não era mais suposto, havia comprovado pelos documentos que
pesquisara e checara na Santa Casa, na casa de Laura e nos cartórios, sabia que
Alexandre era um dos gêmeos que buscava na imensidão da cidade. Emanuel está
estático, sem palavras, afinal perdera um amigo, como falar para sua esposa;
ainda atônito pergunta para Eduardo: “Por que você fez isso? Não precisava
matar e estragar sua vida, eu sei que ele te odiava, mas era uma mera questão
de ignorar, Eduardo!” “Eu não o matei; como na plataforma do Metrô um tiro
surgiu do nada e atingiu em cheio a cabeça do Alexandre.” Disse Eduardo em
resposta a Emanuel. O tiro pareceu vir da passagem no closet, disse já um pouco
menos tenso, Emanuel dirige-se a fenda e a ultrapassa como um raio e encontra
sobre a cama uma capa preta como aquela que que fora descrita pelos médico no
hospital, pensou ser Alexandre a figura misteriosa, mas logo descartou a
possibilidade, disseram que era uma mulher, Alexandre jamais se vestira de
mulher para visitar o enfermo, era masculino demais no porte, desconfiariam,
não; reluta em busca de uma resposta rápida, lembrou ter visto Mariana deixar o
prédio quando chegava, parecia estar apressada, afobada, lembrou que não
respondeu sua indagação sobre o ensaio, sem desconfiar do que encontraria no
apartamento de Eduardo deixou-a ir, pensava só, nada disse a Eduardo ou a
Moura. Sentou-se na cama para melhor pensar, sabia onde ela morava, pensou em
ir até lá, recuou da ideia, levantou-se, iniciou o passo e sentiu algo sob os
pés, era um brinco um brinco de pressão, uma bijuteria fina dourada adornada
com pedras vermelhas brilhantes. Teria Alexandre recebido uma mulher em seu
apartamento? Pensou, mas descartou a ideia, devido o ocorrido, pensou na
engenharia criada por Alexandre só para observar o vizinho, isso era ideia
fixa, não acreditava em outra possibilidade. Chegou a aventar o envolvimento
amoroso entre eles, mas deixou de lado, não porque fosse impossível, mas porque
sempre nutrira um sentimento secreto pelos dois, chegou a confessar ao seu
interior, mais pela rispidez de Alexandre do que pela leveza de Eduardo, deixou
que uma lágrima rolasse sem rumo pelo morto e outra pelo agredido, deixou que a
ideia se evanescesse. Agora era hora de outras atitudes, buscar o assassino.
Moura pede a Matias que venha ao seu encontro e ordena uma varredura no entorno
do prédio para ver se encontrava indícios do crime, Emanuel entrou e disse que
não era preciso, pois ele sabia quem fora, e para surpresa de todos o assassino
voltou à cena do crime, em pranto copioso Mariana adentra o quarto e se entrega
às algemas de Matias, fora ela quem desferira o tiro para salvar Eduardo, de
quem confessa ser apaixonada, das garras de Alexandre, ela também vira naquele
dia Alexandre se aproximar de Eduardo na plataforma do metrô e fazer menção de
que o empurraria para os trilhos na hora em que o trem estacionasse na
plataforma e tudo não passaria de um acidente, não teve dúvida, sacou da arma
que sempre trazia e atirou, mas errou o alvo e atingiu Eduardo, que a tudo
ouviu estarrecido, Moura olhou para Eduardo e teve a certeza de que ali estavam
seus dois filhos gêmeos, quis contar para Eduardo a verdade, mas recuou, de que
valeria agora esta verdade pela metade, gostaria de ter os dois em seu abraço,
queria dizer aos dois que era o pai biológico deles, mesmo que eles o
rejeitasse, mas teria cumprido seu papel de pai, teria assumido a ambos, mesmo
que tardiamente, daí em diante, seria com eles, não passariam a vida sem saber
quem era seu genitor. Ordenou que encaminhasse Mariana à delegacia e deu o caso
do metrô por encerrado. Emanuel não precisou perguntar, concluiu com certeza de
que a mulher do hospital era Mariana, Moura já sabia, só não tinha certeza
absoluta, por isso se calara. Emanuel abraçou Eduardo com muito carinho
enquanto os homens do rabecão recolhiam o corpo de Alexandre para encaminhá-lo
ao I.M.L., tratou logo de limpar o sangue do chão, enquanto Eduardo tentava
entender a situação ainda em estado de choque. Oito dias depois Emanuel leva
Eduardo para uma viagem e se restabelecer do impacto, partiram rumo ao
nordeste, quiseram passar na chefatura para despedirem-se de Moura, que mais
uma vez tentou contar a verdade, mas as palavras não saíram, deu um abraço
apertado e demorado em Eduardo, outro também em Emanuel, viu ainda, quando já
na calçada, Emanuel passou o braço sobre o ombro de Eduardo e caminharam juntos
rumo ao carro, pensou com os seus botões: “sejam felizes.”
Aquela
manhã era fria, uma fina garoa caía como se fosse um choro lento, por volta das
dez horas o caixão baixava sepultura, uma despedida solene para quem viveu
solenemente, tiros para chão, Matias rendeu sua última homenagem lançando uma
rosa vermelha sobre o caixão, levantou a cabeça, enxugou as lágrimas, últimas e
teimosas, farejou o ar e disse: “descanse em paz chefe!”.
Moura
morrera numa noite após o fato da Rua da Consolidação, morrera dormindo,
morrera dentro do silêncio que sempre norteou sua vida, toda a chefatura sentiu
muito a partida inesperada, não só se aposentava da polícia, mas também da vida
que só lhe pregou peças. De volta para a chefatura de polícia Matias pensava no
que tinha sido Moura na sua vida, acelerou a viatura quando pelo rádio ouviu um
alerta de que havia um incidente na estação de metrô da Avenida Central, alguém
disparara da escadaria e tinha um ferido, Matias ligou a sirene e irrompeu
sobre a multidão que se aglomerava, olhou para o alto e disse: “agora é comigo
chefe!” Fechou seu diário e assinou: Matias.
SÉRGIO SOUZA