Beto
abre a vidraça. Ela se remexia tentando romper o trinco, pois o vento batia
forte querendo entrar. O sujeito dirigiu-se a ela, e, ao abri-la, viu-se
defronte a uma infinidade de majestosos detalhes naturais, e não consegue
evitar que seus olhos percorram a paisagem, e suas retinas pousam um tempo por
sobre os morros verdes e longínquos. Há cinza no firmamento, na verdade, ele é
todo cinza, já que uma nuvem imensa cobre tudo o que nele havia de azul.
Somente aonde as vistas não alcançam é que a tinta celeste ainda era azul.
Alguns
galhos de trepadeiras intrujonas penetram de fininho. Os ventos já haviam
invadido o quarto de Beto, e agora não mais se agitavam com furor, apenas
vagavam pelo ambiente, como se inspecionassem minuciosamente o local, querendo
tocar até as partes mais sombrias desse quarto. O homem, ainda encantado, deixa
que a brisa sopre em seu rosto, e fecha os olhos tranquilo; está melancólico,
esse senhor, mas aprazido, pois recebe o beijo divino da Mãe Natureza, que o
fascina de maneira tão vertiginosa.
Atrás
dele jazia um grande amigo, o seu único amigo: um piano velho e já usado
centenas de vezes. Quantas não foram as noites que esse parceiro deitou a
cabeça de Beto em seu colo, cantando-lhe cantigas de ninar e lhe acariciando os
cabelos, para que o pianista pudesse ter alguma tranquilidade dentro de si,
ainda que fosse por míseros e apressados momentos – mas sempre tão intensos.
Quantas vezes ele precisou fugir e o instrumento foi o único a lhe oferecer uma
porta de saída, quando nefastas e horrendas criaturas da consciência perseguiam
carnicentas e famintas esse angustiado homem...
O
companheiro musical o saúda, e lhe convida para uma viagem. Beto, com o
espírito massageado, sorri satisfeito e agradecido para o amigo, e novamente se
volta à janela, aberta para ele como o céu para outras dimensões, deixando que
o caos interior se aquietasse por alguns instantes.
Eis
que um canto se faz em seu coração. Uma voz sopra na sua alma uma música, como
se o Universo inteiro descesse quieto para cantar nos ouvidos desse homem a
composição dos céus. Parecia um chamado. Coisa difícil é conter algumas
sensações estranhas e maravilhosas que às vezes, tão de repente e fugidias,
atravessam como uma espada o espírito, rasgando qualquer angústia que nele
pudesse residir. Havia sido isso que ocorrera com Beto, não havia modos de
conter a formidável alegria que o acometeu nesse momento; ele flutuou.
Então
se volta novamente esse senhor ao piano, que o fita ainda com o convite em
valia. Uma força o impele, e automaticamente ele se vai sentando, sem ajeitar o
sobretudo que usava e aconchegando-se confortavelmente sobre o banquinho de
onde comporia a trilha sonora da viagem de sua alma.
Assim
que ele começa, a um leve toque nas teclas do piano, talvez tenha se aberto o
céu, pois um impulso o invadiu logo no primeiro tilintar. E dentro dele algo se
remexe, algo parece querer sair, se libertar de seu coração para as profundezas
daquele quarto solitário. E ele não para, segue com os dedos a tocar, dançando
leves pelas teclas do piano. "Oh solidão! Você escuta essa música? Que me
importa se escuta?! Componho para mim, é somente meu espírito que pretendo
atingir! O céu já me ouve, e isso me basta. A imensidão do firmamento é minha
mais majestosa plateia, e eu o escuto perfeitamente, ele me diz o que fazer, eu
apenas obedeço aos seus sussurros, que são os comandos do meu coração. O
pensamento é como a sereia do mar que cada ser humano carrega no peito, o mar
severo e calmo, o mar colérico e gigante, o mar de águas frias e salgadas, que
com sua imensidão oceânica esconde a sereia, mas que, mesmo com toda essa
grandeza, com toda essa infinitude, não cala o seu canto, e os navegantes
exploradores são atraídos, hipnotizados, e não raro se perdem quando deleitados
nos prazeres dessa voz interna que convida às mais profundas profundidades do
espírito humano. Escute, solidão, o cântico do meu piano, e me deixe
mergulhar-me em meu espírito na companhia da donzela dos mares, que me convida
à escuridão de águas remotas".
Aquilo
que está dentro dele quer cada vez mais sair, e à medida que Beto faz música,
essa força parece ganhar força, e tamanho, e dimensões cada vez mais
impossíveis de permanecer em seu corpo, até que, fugindo de dentro de si,
dançando no ar como uma sereia a nadar pelo oceano, rasgando levemente seu
peito, surge uma mulher flutuante, uma bela mulher flutuante. Não que fosse uma
sereia propriamente dita, sendo metade peixe metade humana, era toda humana,
inclusive, no entanto balançava seu corpo pelos ares como uma perfeita sereia,
e por isso tanto se assemelhava a essa criatura mítica.
Ela
se coloca acima do piano, e, quase toda nua, apenas com um lençol solto a
cobri-la nas partes mais baixas, abraçando desde o tornozelo ao diafragma,
deixando à mostra as mamas, divaga com prazer, como quem se deleita nos sopros
da música. Mais parecia um espectro, pois de tão pálida, branca, quase
transparente, podia-se ver, ainda que imperfeitamente, por através dela. As
linhas de sua silhueta são esfumaçadas, e desses traços um vapor se desvanecia
enquanto a mulher flutuava num delírio sereno. Parecia ser impossível senti-la
com as mãos.
Beto está com os olhos fora de
órbita. Não crê nas mentiras que as retinas podem dizer, tem medo,
paulatinamente é hipnotizado. Coça as vistas, sacode a cabeça, balançando os cabelos
ondulados; engole em seco, seu coração se acelera, e não percebe que mesmo
assustado suas mãos não cessam a melodia. A figura misteriosa abre os olhos, e
se coloca flutuante à frente do pianista. Ela o olha bem de perto, quase o
toca, seus narizes estão a menos de um milímetro um do outro, e de repente a
formosa criatura fez sorrir os seus lábios, incentivando Beto a não cessar
jamais a música. O homem, atônito, embora tranquilo, apenas fecha os olhos, e
não evita que pelo seu rosto triste escorra uma lágrima solitária, calada, que
vai despencar de sua face ao seu colo.
Então ele abaixa a cabeça,
guaia, solta o espírito, enquanto, no desempenhar da triste melodia que seus
dedos executavam, a sereia dos pensamentos dança por sobre o seu único amigo, o
piano.
GUI RODRIGUES
I
O som do piano é a alma do
pianista
Esse alquimista das notas que
faz da melodia
Seu meio dia, sua meia noite
Da vida sinfonia.
Evoluí numa mágica interna de
vontades
Numa mistura surda de
necessidades
Faz rima com o volátil
Sonetos com o tátil.
É sonho, é mistério, é ilusão
Sem corpo, é só coração
Suavidade melódica.
Ácido e suave, amor e ódio de
casaca
Luz e trevas, desejo e desprezo
atado
Composição de pé quebrado.
II
Eu piano nos versos
Enquanto tu pianas na prosa
E nesse pianarmos,
Lançamos sons e ecos no ar,
Numa vontade louca e
Beethoviana
Para ensurdecer o mundo,
E bailar com a Lua senhora e
vadia
Fazendo chorar a noite com
saudade do dia
Revirando madrugada sozinha na
cama
Enquanto vagueia os dedos cegos
no teclado
Ora preto, ora preto, numa
alternância frenética
Da dor e do deleite, do negar e
do sentir
No divino direito de pianar.
SÉRGIO SOUZA