–
Com licença – disse-me.
Era
um homenzinho. Jovem, braços e pernas curtos, mãos gordas, um nariz de batata
enorme e achatado, olhos pequenos e cansados, boca fina, chumaços de pelo
escapando das orelhas ressecadas, dentes pretos de tão podres e um mau hálito
que quase me desmaiou. Vinha cambaleando na embriaguez, trôpego por entre as
mesas do bar, trombando aqui e ali, derrubando copos e talheres das pessoas e
não se importando com os insultos que lhe proferiam elas.
–
Toda – respondi.
Ele
veio se sentar logo a meu lado. No balcão do bar quase não havia gente, por que
aquele sujeito vinha se colocar logo ali, à minha esquerda, quando em tantos
outros lugares ele podia se sentar? De qualquer forma, procurei ignorá-lo,
continuei tomando meu whisky, quieto e absorto. Mas não era a intenção daquele
rapaz bêbado me deixar em paz, e começou a desabafar palavras quase
ininteligíveis de tão enrolada que estava sua língua ao falar.
–
Aquele desgraçado, patife! Quem ele pensa que é? Só porque faz algumas coisas
se acha o maioral, o dono da banca, pois minha paciência já se esgotou. O que é
isso no seu copo? – Voltou-se a mim, cutucando-me.
–
Gasolina. – Respondi sem olhá-lo.
–
Gasolina? Por que alguém tomaria gasolina? Vamos, dê-me um gole.
E
tomou de mim meu whisky com as suas mãos roliças, levando aos feios lábios o
copo e inundando aquela boca fétida e podre com toda a minha bebida,
subtraindo-a por inteiro. Isso me irritou, mas antes que eu pudesse dizer
palavra ele berrou:
–
Ah, seu brincalhão – e deu um tapa nas minhas costas –, essa gasolina não é tão
forte quanto eu pensei que fosse! – Em seguida caiu na gargalhada.
Eu
me controlei. O moço estava embriagado ao extremo e mal podia se controlar;
talvez, no dia seguinte, nem se recordasse dos acontecimentos da noite.
Então
chamei o garçom e pedi mais uma dose. Ele me serviu, agarrei com os dedos o
copo e fui em direção aos outros bancos, distante daquele sujeito ébrio até os
dentes. Porém, senti alguém me puxando pela camisa. O homenzinho insistia em me
importunar.
–
Aonde você vai com a nossa gasolina? He he!
–
Vou usá-la para atear fogo em todo este estabelecimento – respondi sorrindo
maldosamente.
Então
dei a ele as costas. Decidi ignorá-lo e procurar alguma mesa do lado de fora,
lá me seria possível fumar, espairecer um pouco e fugir do homem inoportuno.
A
noite foi passando. A madrugada estava fresca e boa. Logo o sol surgiria em
aurora pintando de azul todo aquele céu negro. O álcool já se mesclava ao meu
sangue e eu não estava mais no meu melhor estado. Fiquei reflexivo, pensava em
ir embora, fechei um pouco os olhos e a tonteira me abraçou. Mas quando, zonzo,
abri novamente os olhos, surpresa.
–
Até que enfim te achei! Cara, te procurei por toda parte, aonde você se meteu?
Pensei que tivesse ido embora, já que não vi nenhum incêndio neste
estabelecimento – sorriu irônico –. Olha o que eu trouxe pra gente – e exibiu
uma garrafa de whisky, batendo-a fortemente sobre a mesa com a parte de baixo
–: gasolina, he he! Bebamos e façamos um brinde!
Confesso
que me espantei. Eu já nem me lembrava mais do sujeito e ele vinha, ainda
trôpego, porém disposto, ter comigo e, pior, convidava-me para beber mais. Nem
aceitei nem recusei, limitei-me a fitá-lo, e esse rapaz malcheiroso e solícito,
foi enchendo os copos e falando algumas coisas que não era possível entender.
Eu
bebia quieto, enquanto ele se lamentava:
–
As coisas não estão boas lá no serviço, meu chefe é um déspota, não tem visão
empresarial, é burro, orgulhoso, preguiçoso, não acerta uma, só pensa nele, um
egocêntrico sem fronteiras, maltrata os funcionários, fica pra lá e pra cá
dando ordens sem sentido, enquanto tudo se degrada em ruínas; a empresa vai
falir, se é que já não faliu. E a concorrência cada vez mais ganha espaço no
mercado.
A
embriaguez é um negócio muito engraçado... Por que esse rapaz, como se me fosse
um conhecido de anos, entupia-me de suas palavras ébrias e lamuriosas? E
prosseguiu:
–
Há tempos um colega de trabalho ousou enfrentá-lo, discordou educadamente de
algumas escolhas do chefe, deu conselhos, boas ideias, mas o dono da empresa,
como todo bom déspota, não aceitou ser contrariado e não deixou barato. Você
não imagina aonde foi parar nosso companheiro de ofício...
O
rapaz falava de uma forma um tanto quanto confidencial, cuidando para que
ninguém ouvisse, embora quase gritasse. Quando terminou seu discurso tedioso,
pediu-me um cigarro, eu dei, peguei um também, acendemos, e continuamos a
beber.
O
tagarela não continha as palavras, falava, falava e falava as coisas mais banais
e sem sentido; pensei, inclusive, que ele me tivesse confundido com algum
conhecido.
Em
certo momento levantou penso da cadeira e foi a caminho de algumas garotas na
mesa ao lado. Chegou abraçando a uma delas sem qualquer censura, e disse
algumas coisas fingindo sensualidade. O que aquela boca fedorenta falou eu não
sei, mas deve ter sido algo bem grotesco, pois as moças responderam com uma
careta de repugnância, pegando cada uma suas respectivas bolsas e indo embora.
Eu
assistia a tudo fumando tranquilamente o meu cigarro; aquele sujeito era mesmo
uma figura estranha.
Ele
voltou com o tronco todo torto, cambaleando, trançando as pernas como agulha de
tricô, e se jogou na cadeira.
–
Mulheres...
Encheu
novamente nossos copos, sorvia sua dose rapidamente, deixando sempre os finos e
podres lábios com alguma gotinha de saliva, que devia ser o ácido de toda
aquela imundície bucal. Depois arrotava um alto arroto nascido do mais
recôndito do estômago.
–
Lá na empresa – ressuscitou o assunto, enquanto eu ouvia calado – tem um tal de
Miguel, é o maior puxa-saco do universo, um baba-ovo profissional, nunca vi
maior lambe-rabo do que ele, um idiota, imbecil. É o queridinho do chefe, o
favorito, e por isso passeia pelos corredores e salas da empresa com um ar de
prepotência que chega dar nojo. Não é muito difícil vê-lo se meter a dar ordens
nos outros funcionários. Se eu pudesse partia-lhe a cara aqui mesmo!
–
Mas que tanto você fala dessa empresa! – Exclamei impaciente.
Ele
pareceu não me ouvir, distraía-se em algum pensamento. De repente levantou me
dizendo:
–
Já venho.
Vi
que ele caminhava ao banheiro. Eu continuei bebendo, já era quase dia, as
pessoas começavam a ir embora e os garçons, ansiosos pelo fim do expediente,
punham-se a arrumar as mesas e cadeiras, despertando nos últimos frequentadores
do estabelecimento um espírito de fim de festa.
Passados
cinco minutos o sujeito voltou. Mexeu com algumas garotas no caminho e
colocou-se novamente à mesa, já enchendo nossos copos. Reparei que escapava de
suas enormes narinas um pó branco, e ele fungava copiosamente o nariz, lambendo
e mordendo os lábios e os dentes a cada minuto. Embora ainda ébrio, estava mais
acelerado, com os olhos esbugalhados.
–
Onde você mora? – Perguntou-me.
–
Logo ali – respondi.
–
Sei... Eu venho de muito longe.
Acendi
mais um cigarro e ofereci um a ele.
–
Qual o seu nome? – Dessa vez foi eu quem perguntou.
–
Gabriel – e sorveu de uma vez a bebida no copo, já se colocando a enchê-lo
novamente.
–
Se as coisas não vão bem na sua empresa, Gabriel, por que não se demite?
–
Ora! – Exclamou surpreso – você pensa que é assim, pedir pra sair e pronto?
Você não conhece nosso chefe, é o pai de toda a burocracia, com ele não tem
acordo, não escuta ninguém, só pensa em viver na jactância, e ai daquele que
não sorrir para todas as suas ações!
–
Ele deve ser mesmo um tirano.
–
Se é! Exclamou – não sabe administrar, é ignorante, surdo como uma porta.
–
E como um homem desse tipo chega ao topo de uma empresa?
–
Não sei, ninguém sabe, é um grande mistério.
Até
que Gabriel não era mal sujeito, só estava embriagado. Continuamos bebendo e se
havia findado todo o whisky da garrafa. Os garçons se recusaram a vender outra
e por pouco não nos convidaram a se retirar, não fosse eu insistir a Gabriel
que fôssemos embora.
Ficamos
zonzos, parados à porta do estabelecimento, e quando eu ia me despedir, ele me
convidou:
–
Você gosta de prostíbulos? Conheço um aqui perto... Fica por minha conta, as
meninas me conhecem de outros carnavais. He he!
–
Não gosto – respondi –, preciso ir embora. Adeus!
–
"Adeus"? – exclamou histérico – nem me fale desse déspota, que as
náuseas assolam meu estômago.
Eu
não compreendi. Ia dar-lhe as costas, mas fiquei curioso e perguntei:
–
Como assim?
–
É o nome do chefe: Deus.
Eu
sabia que aquele homem sujo e estragado era louco, mas agora ele ultrapassara
todos os limites.
–
Você é louco?
–
Não, não sou louco – disse seriamente –. Sou um anjo que trabalha para Deus.
Não
pude me conter, uma gargalhada involuntária veio preencher minha boca e eu a
libertei em alto e bom som, enquanto ele me fitava.
–
E de qual tipo você é? – Ironizei.
–
Do tipo que faz tudo, um auxiliar de serviços gerais. Mas fui registrado mesmo
como Anjo da Guarda.
–
Cara, você é maluco?
–
Não, maluco é você, incrédulo. Aliás, você tem seda aí? Preciso relaxar um
pouco antes de ir pro Casarão.
Eu
estava pasmo e assombrado. Aquele homenzinho acreditava mesmo ser um anjo, e
falava com uma propriedade de causar inveja.
–
Não tenho; só fumo cigarros – respondi.
–
Tudo bem. – Afundou as mãos no bolso, procurando – ah! Eu tenho aqui.
E
retomou o assunto, falando enrolado, enquanto coçava com os cinco dedos da mão
direita a palma da mão esquerda:
–
Vocês, homens, são todos tolos, são fracos, covardes. Não sabem nada sobre as
coisas divinas, desconhecem absurdamente os propósitos do Chefe. Não sei que
tanto se preocupam em criar regimes, doutrinas, rituais de devoção, leis, sendo
que a única lei coerente é a natural. Vocês são carentes, nascidos com uma
ânsia de adoração, precisam de ídolos tanto quanto precisam de água ou comida
para sobreviver. E há os oportunistas espalhados por aí, entre vocês, que
conhecem essa necessidade de idolatria e não hesitam em usá-la contra vocês
mesmos para benefício próprio. Veja só, minha função é guardar o ser humano do
próprio ser humano, não é absurdo? "Homo homini lupus". He he! Mas
sinceramente, já não me preocupo mais, o Chefe, aquele tirano salafrário – e apontou o céu – que não reconhece meus
esforços, não sabe nada sobre a criação, desconhece as burradas que faz, eu é
que não vou me preocupar, lavo minhas mãos. E o pobre Lúcifer... Bem que tentou
avisar! Enfim, deu no que deu.
De
certo modo ele falava, para o meu espanto, com alguma sabedoria.
–
E cadê suas asas? Sua auréola? E todas aquelas vozes cantando em coral com
luzes a brilhar em redor? E o sexo? Anjos não têm sexo – respondi brincalhão
com uma ponta de sarcasmo.
Ele
me olhou sorrindo malicioso, enquanto chacoalhava de um lado para o outro a
cabeça negativamente:
–
Foi como eu disse; vocês são todos tolos, não sabem nada sobre as coisas
divinas...
Mais
uma vez ele falava com total propriedade, e digo que se suas palavras não
fossem tão absurdas eu acreditaria em todas elas sem pestanejar.
Mas
eu estava disposto a ir embora e encerrar esse assunto maluco. Despedi-me com
um aperto de mão, quando Gabriel me disse:
–
Não vá pela Rua Marechal Lisboa!
Eu
franzi o cenho, parei, olhei para trás sem entender, e ele, percebendo minha
confusão, reafirmou:
–
A Marechal Lisboa, não vá, faça outro caminho, dê a volta pela Frei Augusto ou
pela Maria Teresa, mas hoje não vá pela Marechal Lisboa, palavra de Anjo da
Guarda.
Minha casa ficava nas
proximidades da Marechal Lisboa, não havia porquê eu fazer outro caminho. A
Frei Augusto e a Maria Teresa iam atrasar minha caminhada em aproximadamente
vinte minutos. E eu, claro, não deixaria de fazer meu costumeiro trajeto só
porque um louco que eu nem sequer conhecia me aconselhou. Se eu lhe desse
ouvidos seria tão louco quanto ele.
–
Obrigado – agradeci, acenando. Ele correspondeu.
Durante
o percurso fui inundado por reflexões. Caminhei um pouco mais atento que o de
costume, assustava-me com o latido dos vira-latas, andava rápido, cabreiro,
ávido de chegar em casa, constantemente olhava para trás e para os lados,
qualquer ruído que fosse punha-me em alerta.
E,
no fim das contas, optei por seguir pela Maria Teresa.
GUI Rodrigues
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