Era
um cubículo. Havia apenas uma janelinha gradeada, única entrada de luz no
recinto, de onde se via dificultosamente o triste céu. Por sorte, às vezes,
dependendo das condições climáticas, via-se também sol e lua suspensos no
firmamento. Um colchão rasgado e um buraco improvisado de vaso sanitário
acompanhavam o ritmo daquela cela lúgubre, melancólica e escura. Infiltrações
contribuíam com o pútrido odor e, por pareidolia, faziam-se desenhos bizarros
naquelas paredes molhadas e manchadas de fungos famintos e devoradores. Um
verde lodoso se formava nas forquilhas da junta entre paredes e teto. O
caminhar acelerado das baratas e dos ratos servia de trilha sonora, e embora
mais parecessem uma marcha fúnebre, era quase a única distração daquele lugar
maldito. Porta de saída não havia, e jeito de fugir muito menos. Havia apenas,
naquele cenáculo, o Epitáfio e a sua solidão.
Esse
homem, sem saber quando, como e por quê, fora encerrado impiedosamente nessa
prisão fria e desumana. Dia após dia assolava-se nas amarguras do ambiente,
como se lá fosse posto para morrer. Tremia compassivamente o corpo, o nariz
ranhento a escorrer, os olhos esbugalhados a chorar, as pernas tremeliquentas
cobertas de urina, e os dentes inferiores se chocando furiosos com os
superiores. Em certo período agonizou um sofrimento desesperador, gritava
berros de socorro e inundava o rosto em lágrimas; tomado pelo terror, maldizia
sua sorte, arrancava feroz e involuntariamente os próprios cabelos numa
explosão de agonia e rolava lacrimoso, acometido por impulsos de desespero, o
corpo cadavérico pelo chão num mero ato de fazer alguma coisa apenas para fazer
alguma coisa, visando conter o crescente medo e pavor dentro de si. Após algum
tempo, mortas suas esperanças, tentou, inúmeras vezes, tecer em sua cela um
suicídio, conjecturando os meios dos quais se valeria para cometê-lo; mas como,
se ali havia apenas vazio? Não tinha sequer ferramentas que o auxiliassem para
tal; nem faca nem pedra nem corda: nada; somente havia horror, e, para alimento
do seu desalento, faltava-lhe ainda a fria coragem que o levasse a abster-se da
vida. Qualquer morte seria lenta e dolorosa. Quantas vezes o desgraçado não
bateu receosa e malogradamente com a cabeça nas duras paredes daquele cubículo,
tingindo-a de viscoso vermelho e carimbando nela a nódoa de sua derrota.
Erguia-se zonzo, fraco e lamuriante, murmurando triste e sôfrego palavras de
degradação contra si, pois até de causar-se a própria morte não era capaz.
No
entanto não há com que o ser humano não se acostume. Epitáfio, paulatinamente,
coagulava o sangue do desespero e serenava seu maltratado coração.
Acostumara-se à solidão e, ainda que defasado, foi fazendo seus amigos aquelas
baratas monstruosas e aqueles ratos mutantes. Porém, a luz do túnel que não
tinha fim surgiu realmente enquanto dormia. Foi um sonho daqueles que se
lamenta ao acordar.
Os
verdes campos correspondiam ao sol sorridente e as nuvens de algodão desfilavam
vaidosas e serenas pelos lençóis azuis do firmamento, enquanto a brisa fresca
causava rebuliço nas crespas e soltas madeixas das poucas árvores a dançar.
Tudo tinha mais cor: o verdume das estepes, o amarelo avermelhado do sol, o
branco das nuvens, e tantas outras cores das diversas e perfumadas flores em
demasia nesse cenário. Epitáfio, alciônico e feliz, respirando os encantos
daquele lugar alegre, avistou de longe o que parecia ser uma gigantesca nuvem,
branca como o leite. Não hesitou e partiu em passos tranquilos rumando ao
curioso fenômeno da natureza. Mas durante o percurso ela surgiu-lhe. Vinha
lenta, difusa, leve e despretensiosa, parecia um floco de neve a flutuar sem
pressa. O homem parou para observá-la, e esperou que ela pudesse ter com ele,
pois vinha em sua direção. E foi o que ocorreu; a mariposa, branca como que
vestida de noiva e tão sem destino como o tempo, batia suas enormes e graciosas
asas solta pelos ares, brincando com o vento e exibindo suas acrobacias.
Epitáfio suspirou deliciosamente, não se dera conta de que se tratava apenas de
um sonho.
Ainda
arrebatado nessa contemplação, a mariposa colocava-se cada vez mais perto dele,
até que veio pousar em seu peito. Um fervilhar de emoção explodiu em seu
coração, e Epitáfio, diante de tamanha adrenalina, após encorajar-se, teve
aquela criatura trajada de noiva em suas mãos, deixando-a repousada por sobre a
junta de seu indicador, cuidando para não assustá-la. Olhou-a bem de perto e
pode ver com perfeição suas brancas formosuras. Ela, abrindo e fechando
lentamente as asas, voltou sua cabeça para o sonhador, como se também o
contemplasse. Ficaram um tempo assim, encarando-os um ao outro. Ele a
admirá-la, ela a exibir-se.
–
Te salva, ó desgraçado.
O
homem sentiu um fluído gelado correr pela espinha. De onde vinha essas palavras?
–
Te salva!
Olhou
com assombro a mariposa. Ela se mantinha quieta, como se o fitasse
resolutamente. "Não, não pode ser...", pensou incrédulo.
–
Te salva, homem desafortunado.
Céus!
De onde vinha aquela voz?! Não seria absurdo dizer que era a bela mariposa a
falar, já que se tratava de um sonho do homem, no entanto Epitáfio ainda não
era um orinonauta e não se dera conta de que naquele momento estava, na
verdade, jazido a dormir sobre o chão frio de sua cela. Não o julguemos, pois,
afinal quantos de nós não sonhamos sem saber que estamos a sonhar? E nos
desesperamos em pesadelos, e nos arrebatamos no prazer de bons sonhos. Se por
nós fosse sabido que essas emoções oníricas não passam de devaneios do mais
recôndito da alma, teríamos as mesmas sensações inauditas que somente os sonhos
podem proporcionar?*
Epitáfio,
mergulhado em seu espanto, tentou ainda desvendar os mistérios daquela doce
voz. Não podia ser da mariposa... A voz vinha de todos os cantos, parecia
onipresente, ou será que, em vez disso, brotava de sua mente? De qualquer
forma, por que aquela mariposa branca como a neve parecia fitá-lo
inexoravelmente?
–
Te salva...
Mais
uma vez! Agora o confuso homem mirava o céu, tentando buscar alguma resposta
que não veio. Olhou tudo em redor, e sem se dar conta não mais repousava sobre
seu dedo a mariposa. Ela partira sem que ele, distraído em sua confusão,
pudesse perceber. Infelizmente a havia perdido de vista.
Estranhamente,
mesmo com todo o seu assombro diante dos hieróglifos daquelas palavras,
mantinha ainda conservada na alma uma tranquilidade majestosa. Encheu de ar os
pulmões, e antes que pudesse expirá-lo, cantou ecoando novamente a voz:
–
Te salva...
De
novo ele virou a cabeça para os lados, procurando. Em seguida começou a nevar,
todavia não caíra a temperatura do ambiente, nevava apenas. E não demorou para
que toda a paisagem fosse coberta de uma neve macia e seca, repousando
delicadas por sobre a grama e as flores. Os flocos alojavam-se ousadamente nos
ombros, nariz e cabeça de Epitáfio, quando uma última vez a voz cantou, agora
sussurrando:
–
Vai, e te salva...
Mas
dessa vez, para seu infortúnio, não teve tempo de se assombrar, pois acordava
assustado em sua cela melancólica, ao lado das feias ratazanas e das asquerosas
e cascudas baratas, enquanto vagavam pela mente os vestígios daquelas
misteriosas palavras, ao mesmo tempo em que, lamentavelmente, caía o homem em
si, esfregando os olhos avermelhados e ardentes.
Porém,
embora recluso naquele cubículo fétido e pavoroso, sentiu-se mudado. Tudo estava
como estava, salvo Epitáfio. Teve uma ressaca onírica que o conduziu a
reflexões inéditas, trazendo ainda nos pensamentos por muito tempo aquele sonho
tão real. Sua cela suja parecia a ele menos nociva do que antes, e as úmidas e
feias paredes daquele lugar, agora, mais remetiam a telas aguardando ansiosas
para serem tingidas, como se aguardassem os talentos de um novo e habilidoso
artista. Nascia, do coração para a mente do sofrido homem, uma ideia, uma ideia
a qual o colocaria numa nova perspectiva diante de toda aquela situação
angustiante.
Epitáfio
já elaborara todo o seu projeto. Não raro refletia nas palavras de seu sonho e
pensava na mariposa. Sentia, ao lembrar-se do bater de asas dessa criatura
branca em meio à brisa fresca, uma manifestação gelada no diafragma, um
sentimento inexplicável que o percorria, uma pitada de alguma coisa nova a qual
o impelia a fazer o que pensava em fazer.
Toda
a sua triste e claustrofóbica cela, com paredes nefastas e tetos gotejantes de
uma água pútrida, havia de ser tornar a mais bela das obras de arte. Ele já
esboçara na mente e na alma os desenhos que viria a transpassar às angustiantes
paredes de sua clausura. No entanto, faltava-lhe a tinta a ser utilizada como
adorno para toda aquela minúscula cela. Então, não havendo outro meio, seguiu
em direção ao vaso sanitário improvisado, assustou, tapeando o ar, as moscas
que por ali pululavam, e tomou em suas mãos o recente bolo fecal esparramado
sobre esse buraco. Também teve de recorrer a outros meios, valendo-se de qualquer
material que pudesse ser transformado em tinta; capturou ligeiramente uma
enorme e monstruosa ratazana, a qual lutou fracassada contra o homem que a
havia imobilizado firmemente com as duas mãos. Estrangulou friamente o animal
até que o matasse, e em seguida, puxando sua grotesca cabeça, arrancou-a de uma
vez, libertando um sangue grosso e viscoso, manchando sua barriga de vermelho
com forte jorro escapulido daquele pescoço aberto. Olhou em redor e foi
arrancando com as maltratadas e compridas unhas o lodo verde-escuro,
estocando-o no cantinho do quarto, assim como fizera com as outras substâncias,
reunindo-as a todas para depois usá-las de tinta. Foi preciso, também, que
Epitáfio incentivasse a si uma 8ejaculação, em vista das novas possibilidades de
cores que o branco e quente esperma poderia oferecer.
E
assim ele foi criando, ora de sua própria urina, ora das agitadas baratas
correndo dispersas por ali, e de mais tantos outros fluídos corporais, uma
infinidade de tons. Os pelos sarnentos dos roedores eram quase tão precisos
quanto verdadeiros pincéis, e em suas vísceras a imaginação de Epitáfio via
inúmeras alternativas de cores e utensílios artísticos. Da própria saliva, o
criativo homem inventaria um óleo envernizante, dando brilho à pintura.
E
começou. Não descansaria a fadiga enquanto não terminasse; é certo que tempo
não lhe faltava, ao contrário: sobrava-lhe; porém estava ansioso para ter
pronta a sua obra. Era preciso terminá-la o quanto antes. Foi pintando,
tingindo, criando, como um engenhoso artista; dia e noite – muito embora não
houvesse tanta distinção entre ambos naquele lugar –, dia e noite laborava
assídua e ininterruptamente, adornando docilmente sua clausura, substituindo as
gélidas paredes do recinto por manifestações de inspiração.
Recordava-se,
enquanto pintava paisagens surreais, da graciosa mariposa branca, leve a voar.
Inspirava-se nos verdes campos de sua imaginação, na dança das árvores
cabeludas, no frescor da brisa, no azul do manto celeste, nos luzidios pontos
brancos a brilhar na escuridão da noite, e na lua, esse farol que dá direção
aos navegantes perdidos no imenso oceano. "Te salva". A musicalidade
da voz mantinha-se nítida, não somente na mente do homem, mas em seu coração.
Chorava sereno ao tingir o cubículo, e fechava devagar os olhos para empurrar
com as pálpebras lágrimas que se acumulavam na nascente de suas tristes
retinas, enquanto ataviava caprichosamente aquela câmara misteriosa que por
tanto tempo o afligira.
Subitamente,
Epitáfio percebeu como já estava mudada sua cela. Havia mais cor, mais alegria,
outros tons, outros ares. A magia de sua obra realmente o havia cativado, e seu
coração se enternecia com tudo aquilo. Das paredes sumiram as umidades, e do
teto extinguiram-se as goteiras, pois através das hábeis mãos daquele homem
desgraçado, tudo ficou mais belo. A feiura de sua cela se desvanecera, dando
lugar a refinados e sutis ornamentos. Era ainda a prisão de sempre, mas
composta de novas formas. Tudo mudou, e sua aflição se aquietou.
Satisfeito,
Epitáfio esticou-se no chão, pousando as mãos sobre o peito. Percebeu, pela
janelinha, que lá fora nevava. Fechou seus olhos cansados, lembrou-se da
mariposa branca, e depois sorriu.
GUI RODRIGUES
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