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25 de set. de 2014

A MARIPOSA BRANCA


Era um cubículo. Havia apenas uma janelinha gradeada, única entrada de luz no recinto, de onde se via dificultosamente o triste céu. Por sorte, às vezes, dependendo das condições climáticas, via-se também sol e lua suspensos no firmamento. Um colchão rasgado e um buraco improvisado de vaso sanitário acompanhavam o ritmo daquela cela lúgubre, melancólica e escura. Infiltrações contribuíam com o pútrido odor e, por pareidolia, faziam-se desenhos bizarros naquelas paredes molhadas e manchadas de fungos famintos e devoradores. Um verde lodoso se formava nas forquilhas da junta entre paredes e teto. O caminhar acelerado das baratas e dos ratos servia de trilha sonora, e embora mais parecessem uma marcha fúnebre, era quase a única distração daquele lugar maldito. Porta de saída não havia, e jeito de fugir muito menos. Havia apenas, naquele cenáculo, o Epitáfio e a sua solidão.
Esse homem, sem saber quando, como e por quê, fora encerrado impiedosamente nessa prisão fria e desumana. Dia após dia assolava-se nas amarguras do ambiente, como se lá fosse posto para morrer. Tremia compassivamente o corpo, o nariz ranhento a escorrer, os olhos esbugalhados a chorar, as pernas tremeliquentas cobertas de urina, e os dentes inferiores se chocando furiosos com os superiores. Em certo período agonizou um sofrimento desesperador, gritava berros de socorro e inundava o rosto em lágrimas; tomado pelo terror, maldizia sua sorte, arrancava feroz e involuntariamente os próprios cabelos numa explosão de agonia e rolava lacrimoso, acometido por impulsos de desespero, o corpo cadavérico pelo chão num mero ato de fazer alguma coisa apenas para fazer alguma coisa, visando conter o crescente medo e pavor dentro de si. Após algum tempo, mortas suas esperanças, tentou, inúmeras vezes, tecer em sua cela um suicídio, conjecturando os meios dos quais se valeria para cometê-lo; mas como, se ali havia apenas vazio? Não tinha sequer ferramentas que o auxiliassem para tal; nem faca nem pedra nem corda: nada; somente havia horror, e, para alimento do seu desalento, faltava-lhe ainda a fria coragem que o levasse a abster-se da vida. Qualquer morte seria lenta e dolorosa. Quantas vezes o desgraçado não bateu receosa e malogradamente com a cabeça nas duras paredes daquele cubículo, tingindo-a de viscoso vermelho e carimbando nela a nódoa de sua derrota. Erguia-se zonzo, fraco e lamuriante, murmurando triste e sôfrego palavras de degradação contra si, pois até de causar-se a própria morte não era capaz.
No entanto não há com que o ser humano não se acostume. Epitáfio, paulatinamente, coagulava o sangue do desespero e serenava seu maltratado coração. Acostumara-se à solidão e, ainda que defasado, foi fazendo seus amigos aquelas baratas monstruosas e aqueles ratos mutantes. Porém, a luz do túnel que não tinha fim surgiu realmente enquanto dormia. Foi um sonho daqueles que se lamenta ao acordar.
Os verdes campos correspondiam ao sol sorridente e as nuvens de algodão desfilavam vaidosas e serenas pelos lençóis azuis do firmamento, enquanto a brisa fresca causava rebuliço nas crespas e soltas madeixas das poucas árvores a dançar. Tudo tinha mais cor: o verdume das estepes, o amarelo avermelhado do sol, o branco das nuvens, e tantas outras cores das diversas e perfumadas flores em demasia nesse cenário. Epitáfio, alciônico e feliz, respirando os encantos daquele lugar alegre, avistou de longe o que parecia ser uma gigantesca nuvem, branca como o leite. Não hesitou e partiu em passos tranquilos rumando ao curioso fenômeno da natureza. Mas durante o percurso ela surgiu-lhe. Vinha lenta, difusa, leve e despretensiosa, parecia um floco de neve a flutuar sem pressa. O homem parou para observá-la, e esperou que ela pudesse ter com ele, pois vinha em sua direção. E foi o que ocorreu; a mariposa, branca como que vestida de noiva e tão sem destino como o tempo, batia suas enormes e graciosas asas solta pelos ares, brincando com o vento e exibindo suas acrobacias. Epitáfio suspirou deliciosamente, não se dera conta de que se tratava apenas de um sonho.
Ainda arrebatado nessa contemplação, a mariposa colocava-se cada vez mais perto dele, até que veio pousar em seu peito. Um fervilhar de emoção explodiu em seu coração, e Epitáfio, diante de tamanha adrenalina, após encorajar-se, teve aquela criatura trajada de noiva em suas mãos, deixando-a repousada por sobre a junta de seu indicador, cuidando para não assustá-la. Olhou-a bem de perto e pode ver com perfeição suas brancas formosuras. Ela, abrindo e fechando lentamente as asas, voltou sua cabeça para o sonhador, como se também o contemplasse. Ficaram um tempo assim, encarando-os um ao outro. Ele a admirá-la, ela a exibir-se.
– Te salva, ó desgraçado.
O homem sentiu um fluído gelado correr pela espinha. De onde vinha essas palavras?
– Te salva!
Olhou com assombro a mariposa. Ela se mantinha quieta, como se o fitasse resolutamente. "Não, não pode ser...", pensou incrédulo.
– Te salva, homem desafortunado.
Céus! De onde vinha aquela voz?! Não seria absurdo dizer que era a bela mariposa a falar, já que se tratava de um sonho do homem, no entanto Epitáfio ainda não era um orinonauta e não se dera conta de que naquele momento estava, na verdade, jazido a dormir sobre o chão frio de sua cela. Não o julguemos, pois, afinal quantos de nós não sonhamos sem saber que estamos a sonhar? E nos desesperamos em pesadelos, e nos arrebatamos no prazer de bons sonhos. Se por nós fosse sabido que essas emoções oníricas não passam de devaneios do mais recôndito da alma, teríamos as mesmas sensações inauditas que somente os sonhos podem proporcionar?*
Epitáfio, mergulhado em seu espanto, tentou ainda desvendar os mistérios daquela doce voz. Não podia ser da mariposa... A voz vinha de todos os cantos, parecia onipresente, ou será que, em vez disso, brotava de sua mente? De qualquer forma, por que aquela mariposa branca como a neve parecia fitá-lo inexoravelmente?
– Te salva...
Mais uma vez! Agora o confuso homem mirava o céu, tentando buscar alguma resposta que não veio. Olhou tudo em redor, e sem se dar conta não mais repousava sobre seu dedo a mariposa. Ela partira sem que ele, distraído em sua confusão, pudesse perceber. Infelizmente a havia perdido de vista.
Estranhamente, mesmo com todo o seu assombro diante dos hieróglifos daquelas palavras, mantinha ainda conservada na alma uma tranquilidade majestosa. Encheu de ar os pulmões, e antes que pudesse expirá-lo, cantou ecoando novamente a voz:
– Te salva...
De novo ele virou a cabeça para os lados, procurando. Em seguida começou a nevar, todavia não caíra a temperatura do ambiente, nevava apenas. E não demorou para que toda a paisagem fosse coberta de uma neve macia e seca, repousando delicadas por sobre a grama e as flores. Os flocos alojavam-se ousadamente nos ombros, nariz e cabeça de Epitáfio, quando uma última vez a voz cantou, agora sussurrando:
– Vai, e te salva...
Mas dessa vez, para seu infortúnio, não teve tempo de se assombrar, pois acordava assustado em sua cela melancólica, ao lado das feias ratazanas e das asquerosas e cascudas baratas, enquanto vagavam pela mente os vestígios daquelas misteriosas palavras, ao mesmo tempo em que, lamentavelmente, caía o homem em si, esfregando os olhos avermelhados e ardentes.
Porém, embora recluso naquele cubículo fétido e pavoroso, sentiu-se mudado. Tudo estava como estava, salvo Epitáfio. Teve uma ressaca onírica que o conduziu a reflexões inéditas, trazendo ainda nos pensamentos por muito tempo aquele sonho tão real. Sua cela suja parecia a ele menos nociva do que antes, e as úmidas e feias paredes daquele lugar, agora, mais remetiam a telas aguardando ansiosas para serem tingidas, como se aguardassem os talentos de um novo e habilidoso artista. Nascia, do coração para a mente do sofrido homem, uma ideia, uma ideia a qual o colocaria numa nova perspectiva diante de toda aquela situação angustiante.
Epitáfio já elaborara todo o seu projeto. Não raro refletia nas palavras de seu sonho e pensava na mariposa. Sentia, ao lembrar-se do bater de asas dessa criatura branca em meio à brisa fresca, uma manifestação gelada no diafragma, um sentimento inexplicável que o percorria, uma pitada de alguma coisa nova a qual o impelia a fazer o que pensava em fazer.
Toda a sua triste e claustrofóbica cela, com paredes nefastas e tetos gotejantes de uma água pútrida, havia de ser tornar a mais bela das obras de arte. Ele já esboçara na mente e na alma os desenhos que viria a transpassar às angustiantes paredes de sua clausura. No entanto, faltava-lhe a tinta a ser utilizada como adorno para toda aquela minúscula cela. Então, não havendo outro meio, seguiu em direção ao vaso sanitário improvisado, assustou, tapeando o ar, as moscas que por ali pululavam, e tomou em suas mãos o recente bolo fecal esparramado sobre esse buraco. Também teve de recorrer a outros meios, valendo-se de qualquer material que pudesse ser transformado em tinta; capturou ligeiramente uma enorme e monstruosa ratazana, a qual lutou fracassada contra o homem que a havia imobilizado firmemente com as duas mãos. Estrangulou friamente o animal até que o matasse, e em seguida, puxando sua grotesca cabeça, arrancou-a de uma vez, libertando um sangue grosso e viscoso, manchando sua barriga de vermelho com forte jorro escapulido daquele pescoço aberto. Olhou em redor e foi arrancando com as maltratadas e compridas unhas o lodo verde-escuro, estocando-o no cantinho do quarto, assim como fizera com as outras substâncias, reunindo-as a todas para depois usá-las de tinta. Foi preciso, também, que Epitáfio incentivasse a si uma 8ejaculação, em vista das novas possibilidades de cores que o branco e quente esperma poderia oferecer.
E assim ele foi criando, ora de sua própria urina, ora das agitadas baratas correndo dispersas por ali, e de mais tantos outros fluídos corporais, uma infinidade de tons. Os pelos sarnentos dos roedores eram quase tão precisos quanto verdadeiros pincéis, e em suas vísceras a imaginação de Epitáfio via inúmeras alternativas de cores e utensílios artísticos. Da própria saliva, o criativo homem inventaria um óleo envernizante, dando brilho à pintura.
E começou. Não descansaria a fadiga enquanto não terminasse; é certo que tempo não lhe faltava, ao contrário: sobrava-lhe; porém estava ansioso para ter pronta a sua obra. Era preciso terminá-la o quanto antes. Foi pintando, tingindo, criando, como um engenhoso artista; dia e noite – muito embora não houvesse tanta distinção entre ambos naquele lugar –, dia e noite laborava assídua e ininterruptamente, adornando docilmente sua clausura, substituindo as gélidas paredes do recinto por manifestações de inspiração.
Recordava-se, enquanto pintava paisagens surreais, da graciosa mariposa branca, leve a voar. Inspirava-se nos verdes campos de sua imaginação, na dança das árvores cabeludas, no frescor da brisa, no azul do manto celeste, nos luzidios pontos brancos a brilhar na escuridão da noite, e na lua, esse farol que dá direção aos navegantes perdidos no imenso oceano. "Te salva". A musicalidade da voz mantinha-se nítida, não somente na mente do homem, mas em seu coração. Chorava sereno ao tingir o cubículo, e fechava devagar os olhos para empurrar com as pálpebras lágrimas que se acumulavam na nascente de suas tristes retinas, enquanto ataviava caprichosamente aquela câmara misteriosa que por tanto tempo o afligira.
Subitamente, Epitáfio percebeu como já estava mudada sua cela. Havia mais cor, mais alegria, outros tons, outros ares. A magia de sua obra realmente o havia cativado, e seu coração se enternecia com tudo aquilo. Das paredes sumiram as umidades, e do teto extinguiram-se as goteiras, pois através das hábeis mãos daquele homem desgraçado, tudo ficou mais belo. A feiura de sua cela se desvanecera, dando lugar a refinados e sutis ornamentos. Era ainda a prisão de sempre, mas composta de novas formas. Tudo mudou, e sua aflição se aquietou.
Satisfeito, Epitáfio esticou-se no chão, pousando as mãos sobre o peito. Percebeu, pela janelinha, que lá fora nevava. Fechou seus olhos cansados, lembrou-se da mariposa branca, e depois sorriu.

GUI RODRIGUES

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