"Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.”
Não saberia dizer quem escreveu isso, quem do alto de sua revolta espancou a gramática ou violentou a palavra, não saberia dizer o porquê também, mas saberia dizer que por onde ando não consigo ir sem ela e que está anda aviltada por muitos de seus gigolôs, entre pastores e ovelhas, entre políticos e eleitores, entre alunos e professores, entre analistas e pacientes, entre o infinito e a finitude, anda no reino a palavra sofrida e muito mal emprega, isso quando não é a empregada dos maus dizeres.
Todos os males estão na retórica, acreditam os intérpretes, desde o mais antigo dos livros que ninguém assume autoria, mas ninguém dispensa sua autoria e passaram a serem senhores das palavras ditas ou não ditas de quem não disse; ninguém assinou ata da criação, mas todos sabem o que está escrito lá: FIAT LUX! E desde que esta se fez busca-se quem escreveu ou quem disse, busca-se a luz que clareei a palavra e seus dizes, de nada adianta criar a forma, prosa ou poesia, se nada se fala de concreto.
Se o analista escreve o diagnóstico, do interior que viu, então não soube; se o agnóstico contesta o que não sabe, então não viu e a Babel está formada, o disse não disse, o escreveu não escreveu virou a verdade mais mentirosa que o léxico expõe. Como o noivo que esqueceu as alianças.
Anda os senhores a semear palavras pelos campos de centeio entre homens incrédulos do que é lido e é na lida que se percebe o quanto são falhos os conceitos e os ditos, pois se uma mentira dita durante dois mil anos vira verdade, uma inverdade dita é sempre inverdade, mas assim não consideram os senhores da palavra verdade.
Quem nos garante uma forma social decente, que não tenha formas ou regras para serem transgredidas? Quem me garante uma análise única de regra única que não precise ser transgredida?
Quem nos confins do Himalaia ou vielas de Jerusalém me garanta que não estou perdido numa elucubração errônea, não! Não quero teorias, quero definições! Não, não quero os escritos do Mar Morto, ou as tábuas de Moisés, quero uma palavra que me seja convincente, definitiva.
Não há esta palavra. Então a luz não se fez, continuamos no escuro a procurar o interruptor da história que venha nos desvendar o mistério da cegueira crônica de conhecimentos, o vazio que a alma humana sente dentro de si, o buscar incessante de cada um por uma verdade, ou melhor, acomodamento dentro dos dizeres e afazeres da vida, norteada na forma cômoda do amor reciproco e da melhor convivência da vizinhança, apesar das distâncias que desunem os vizinhos, do amor calor humano que unem corações com regras definidas ignorando o sentido e o sentimento dessa fluente troca de fluídos.
Pai afaste de mim este cálice, não se aguenta mais essas ilusões, nem corações ou mentes para suportar as iniquidades das palavras, em algum ponto esqueceram as conjunções, as preposições e o verbo criar ficaram sem sentido, tudo se substantivou com os mais bizarros adjetivos a tira colo, Pai afaste de mim este cálice ou então fale, pois de silêncio os degredados filhos de Eva estão cansados, Pai afaste de mim este cálice, da fome duelando com as abastanças, das Marias apontando dedos para Madalenas, para o amor desamado das camas de alcovas, das misturas errôneas e interpretações equivocadas, Pai afaste de mim essa horda que invade sem sentido os cérebros como Atila em Roma, Pai afaste de mim essas dúvidas.
Só o silêncio dos inocentes é a resposta. Quero os clowns de Shakespeare, os palhaços da Ribalta, os anéis de Saturno. Quero as respostas do universo em expansão, vou esperar as notas oficiais sentado na calçada do destino na companhia daquele senhor de barbas brancas comendo sanduiche de mortadela com refrigerante sem gelo.
SÉRGIO SOUZA
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