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16 de set. de 2014

ENTRE A ESTRADA E O PRECIPÍCIO


O café ainda estava morno, embora fosse de ontem. Despejei-o da garrafa no copo e fiquei perdido em alguns pensamentos sem mesmo dar conta de onde estava. A fumaça discreta que flutuava desvanecia-se no ar com gingado envolvente, enquanto eu me mantinha absorto. Não quero pensar, no entanto sei somente pensar. Dei um, dois, três goles no café, agora já frio, e seu sabor misturou-se com outros de costume que em meu paladar habitam, inundando minha boca seca. Não me importa que esteja frio o café: gelado, morno, quente, fervente, ainda assim é café, mudando apenas sua forma. A forma é importante, porém não se compara à essência; o café, sendo ou não de ontem, é café. Eu procuro não pensar, mas tentar não pensar é também pensar. Parece que toda reflexão tem um sabor: as de hoje estão misturadas com este café de ontem; as de hoje são mais lembranças que reflexão, e as de hoje, mesmo sendo tudo o que me restou, como diz o poeta, não são boa companhia. E tenho eu companhia que não me sejam más? É dolorida a forma como eu aprendi a saborear recordações, mas até que a dor é aprazível para uma alma masoquista.
Pensar parece não ser nada. Mas o sabor do café morno, o café de ontem, tem o sabor de todas as reflexões que a lembrança guarda como diferença que há entre, um cigarro e um café, e um café e um cigarro; o cigarro posterior é reflexivo, o anterior é lembrança, a alma sonha neste último e é resoluta no primeiro, entre o café e os lábios, aquela distância é um ato de amor, um com a sanha sedutora de quem se aproxima e o lábio inebriado na espera daquela invasão quente, surrealista de prazer, o gole primeiro invade a boca como jorro de alegria e calma, o lábio se acalanta na borda da xícara e o líquido é o invasor bem vindo, mesmo que seja uma alma sofredora, masoquista; é filosófico convidar alguém para compartilhar o café, o ato, o instante e a conjugação de duas almas.
Sempre pensei que as pessoas de pouca memória são as mais felizes. Vivem e esquecem, e por isso vivem. Não se lembram de nada, tampouco de sofrer. Ora, todos esses sorrisos são verdadeiros? De que importa, se são sorrisos! Não me irrita a felicidade de todos esses vegetais que não sabem que são tristes: amo-os a todos, amo-os, amo-os como se ama ao destino. Mas quem ama o fado, essa coisa obscura e grande? Já que não se tem para onde correr o suportar torna-se amar, e o amar, por sua vez, torna-se amor fingido. Mas é quase a mesma coisa; até porque tem muito de Amor Fati no Carpe Diem. Ah, cá estou pensando novamente, absorto em mim, submerso nas minhas águas; sou uma ilhota de mim mesmo cercado por mim, "sujeito a estas distrações, a este sonhar acordado. Que lhe hei eu de fazer? Andando, falando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo. Francamente me confesso sonâmbulo, de soníloquo"; neste instante devo estar dormindo... Ou estou acordado enquanto todos dormem?
Fiz do pensar minha luz da manhã, do café da padaria, meu sonho, devaneio; fiz do Diem um Fati, do Amor, Carpe; fiz das miragens da janela de vidro limpo da padaria um olhar para natureza humana que se perde na vontade de Amar. O destino é o amor que a vida nos impõem, e este nos manda Amar, o outro como a si, e a si como um coração que desabrocha feito flor, Amor direcionado, Amor vivido de dois seres, Amor olhar, Amor toque de mão, Amor... Do café à solidão é um gole, a solidão triste dos ignorantes das manifestações da vida que vivem por viver, o esfuziante prazer de respirar sobre a Terra, da janela observo os que passam e vão sós, mas quantos desses guardam em si uma chaga recôndita, ah, esse momento presente que é Amar e não Amar, se entre pessoas o que fazer, senão Amar? E você que esta diante de mim, olhando meu tomar de café, jamais imagina a alma que sonha acordado enquanto todos dormem, no sonolento colchão do Carpe Diem, acomodados no travesseiro do riso simples e do cumprimentar automático.
E o silêncio cai como a garoa de manhã fria, como o sol que se retira ao entardecer, como o silêncio que nos preenche de nós mesmos. Nesta manhã adocei de você o meu café, tomei esperança, pedi uma média de certeza e olhei pela janela da vida o caminhar da vida.
É estranho pensar no amor, o amor deve limitar-se a apenas ser sentido, mas que diabos as pessoas se metem a pensá-lo! O ser humano é sem controle: não governa seus pensamentos tampouco suas emoções, é uma vítima de si mesmo; escraviza-se na ideia de liberdade e vive, vive falando, pensando, sentindo, de forma tão desgovernada quanto uma jangada em alto mar, vendo no sopro dos ventos e na força das marés a sua possibilidade de locomoção; o homem é apenas o náufrago sobre essa jangada. Viver é ser navegado.
Eu penso sem destino, sinto sem destino, caminho sem destino, e a estrada que escolhi não sei bem se realmente escolhi, estou nela, e já que aqui me encontro, cabe-me somente observar a paisagem. Meu destino ousado me obriga a amá-lo! Ah, contudo é justo que eu o ame, amor é também sofrimento, e é assim que eu amo meu destino: sofrendo-o.
Quem nunca se enganou de propósito? A maior ilusão das pessoas é acreditar que amam a verdade. Eu me engano de propósito, mas sabe lá se sou eu quem me controla... Tento qualquer coisa, busco, corro, corro que até me canso, não estou parado, e por que o cenário é sempre o mesmo? Acho que tudo se movimenta, e eu me mantenho inerte, refletindo sentado, sobre a minha jangada.
“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar!” Sabe bem o dito popular, a sabedoria popular pode falar errado, mas jamais pensará errado, o ser intelectual se perde e atormenta no caminho único, o qual chama destino e no desatino se desama, num desamor sofrido e perdido no próprio sentir, amar um amor seu, é tormenta, tempestade, amar e deixar amar, deixar um amor se manifestar, interferir, forçar as barras da fortaleza, talvez não seja o mais correto, se o destino fosse uma jangada, estaria o pescador ao sabor do mar, tentando dar um rumo ao seu traçado, ao manejar sua veja precária, mas sob o céu, a vida não é o mar e a jangada, não está à deriva, buscamos eufemismos para aliviar as nossas ignorâncias diante da vida, quero amar você, quero amar, a natureza, e pouco me importa o que seja o amor, pois toda forma de amor vale a pena, o que se extrai do olhar suave, ou o que cava com as unhas para retira-lo da terra, ou se arrasta a rede para surrupia-lo do mar, amor e destino são formas de mim mesmo, se já não posso defini-lo é porque já não sei de mim mesmo, já não consigo navegar no mar negro do café da confeitaria ou no azul-mar do peito que me abriga; não a forma, mas a alma. E sofrer na alma é pensar sem realizar, sonhar sem perspectiva, pois toda verdade está na mentira que nos engana e nos faz perder a sanidade quando o destino nos prega uma peça, como vaga marinha que vem do infinito e nos invade por inteiro molhando o mais recôndito espaço do eu, assim é a vida, o destino; que nos faz propósito de seus instintos, e quando os trens da alegria da vida passa têm a impressão de estarmos parados e a paisagem é quem se move, move-se para dentro com medo do que o destino pensa da nossa inercia diante dos impulsos, queria ser o poeta de Itabira para poder escrever que dentre amantes, o quê fazer senão amar; quero amar você, nesta noite única chamada vida; quero o mar para poder velejar com o destino, de quem; de propósito, criou toda esta confusão, ah! “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar!”
Ainda no sem-fim de densos pensamentos, engolido até o pescoço pelas bravas águas deste oceano, não percebi o restinho de café no copo. Sorvi-o, por fim, e já estava gelado, entretanto não deixei de sentir seu sabor. Saquei autômato do bolso uma caneta, e comecei a rabiscar um guardanapo. Distraí-me. Não é difícil estar-se distraído, essa é a busca da humanidade: distrair-se com propósitos inventados, vícios, prazeres... "Todo prazer é um vício", e quem não está viciado? O vício não mata, ao contrário: salva a vida. Por isso vicio-me, matar-se é beber do chafariz da vida.
Falando em distrações, leio com assombro o que acabo de escrever no guardanapo; alguma alma minha viu a oportunidade de escapar enquanto eu rabiscava absorto e se derramou discreta e silenciosa; como aquela lágrima de quem já se acostumou a chorar muito; não percebi, estive longe por um tempo, e agora me surgem estas palavras: O sonho pelo sonho!
Eu posso, quando imagino. E sonho, não para realizá-lo, mas para sonhar. Somente.
Deixei, como tudo na minha vida, que o vento soprasse meu destino. Aguardo, no trem, a estação que nunca chega. Eu sou o caipira no trenzinho do Villa-Lobos, "lá vai o trem sem destino...", é esse que eu quero; descarto o Fati, e fico apenas com o Amor. A linha do horizonte é onde estou, e não há nada por lá que não possa ter por aqui. É do não ser que eu extraio o ser. As paisagens mais belas são aquelas que pintamos, os pincéis manchados de tinta indicam vivência, e as cores são várias. Oh! Eu misturei tudo e agora o desenho está indecifrável! Talvez eu tenha tingido perfeitamente o meu interior nessas paredes do mundo, deve ser isto que somos quando não se tem nenhuma máscara: uma mistura de um monte de coisa. Fingir-se é mesmo um dom, fingir-se até se tornar, convencer primeiro aos outros para somente depois, através dos convencidos, vir a se convencer. Falar de si para si como um meio de ocultar-se, devir o que não se é, mas manter a essência, como o café, que quente ou frio, ainda é café.
O café, o amor e o destino; você, o destino e eu; um mar; um poeta e o pescador; o céu, as mãos e o poeta, emaranhado insólito para um momento num café, o pensamento que viaja sem nave, mas é sempre o caminho para a enorme procura do que jamais perdeu; o tempo. Um Fati de vida, um amor Carpe Diem, um campo sem zéfiros, mas cheio de sentidos e sentimentos, buscar a vida é o sentido maior do existir, amando, sonhando, você, eu...

Ops! O ônibus!
GUI RODRIGUES
SÉRGIO SOUZA

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