Sérgio Souza
“Noves fora
são quase nada, era de vidro o anel, dei meia volta na ciranda, volta e meia
quero dar”, virou a esquina o cantador a cantar este refrão, assim mesmo,
redundante, cheio de lugares comuns, de frases feitas, afinal, a vida é um
lugar comum.
Comum
como ele que seguia com sua violinha de corda quebrada, com as vestes que a
providência lhe dera; ia como quem nunca chegou, mas também nunca partira,
sempre estivera ali, na esquina, uma confluência da avenida do passado com a
rua do futuro, o presente passou ao largo.
Passaram
muitos invisíveis por ele, iam de gravatas e maletas e chapéus, passaram sem
notar a presença do ontem, sem notar que por ali passava no garbo de frangalhos
um coração que batia os pés no mesmo compasso. Era um alguém que ficou um passo
atrás na vida, mas que andava uma batida á frente de quem nunca saiu do lugar,
como os passantes que passavam sem sair do lugar, ele ia; cantando o encanto do
desencanto dele e todos nós, ia, simplesmente ia, girando sua ciranda que não
fora Lia de Itamaracá quem lhe dera, mas girava dissonante na sua conta
imprecisa.
Parou na esquina outra, sentou no meio fio frio da
calçada, descansou sua viola de corda quebrada para conversar com o inaudível e
assim ficou balbuciando seu passado a limpo, como quem corrige; como quem agora
sabe o que quer ou diz, no relógio da padaria moscarenta o dia já passava do
meio mais um quarto, mas para ele o tempo é uma única verdade, é único. O que é
contar o tempo para quem perdeu a noção dele?
Um devorador de almas,
mas das almas que com ele se preocupam, como as dos passantes alheios no seu
internato pensante, o tempo só tem sentido para aquele que acordou depois do
tempo.
O quê habitava aquela mente? Uma pergunta que circundava
o ar, pergunta que inquietava a quem o observava pela lente do medo que as
pessoas sentem dos maltrapilhos, dos sarjetantes; aqueles, os bem-nascidos.
Trazia no rosto, não a marca do tempo vivido, mas o
vivido pelo tempo, rosto queimado das labaredas das fornalhas da vida,
escaldante senhor de inúmeras caldeiras, rosto de quem forjou muito ferro na
fornalha da vida, cada marca daquela, na face, era depositária da lembrança de
suas batalhas, suas discussões com Deus, com os amores e dores fatais, a quem
por si, com certeza, por muitas situações respondeu: “Não!”
As
mãos grossas de empunhar os arietes contra minaretes e campanários era exemplo
de muitas carícias em dorso duro de amante indomável, mas eram marca de quem
jamais se deixou levar pela brisa traiçoeira ou os ventos impositivos das
casacas, ou sedutoras sedas dos lençóis de alcova; hoje senhor das esquinas,
onde outrora reinara junto às rainhas nuas das horas mortas, sua aparência
septuagenária exalava sua disposição dos quarenta e poucos que carregava.
Todos
pararam quando aquela senhora, sim; uma senhora, dessas que guardam consigo os
segredos das poções mágicas, daquelas senhoras que venceram Chronus e desafiam
as ampulhetas, aproximou com o ar
cândido de quem é superior; guardaram suas respirações aqueles que observavam.
O contato foi lento, no compasso de que anda na vagareza da eternidade, puxou
de um envelhecido cachimbo, acendeu-o com a brasa da ansiedade dos
espectadores, olhou-o com fixação e num átimo, de quem puxa o ar pela última
vez, cochichou palavras que a curiosidade não decifrou. O homem esboçou um
gesto com a cabeça, enfiou a mão na sacola ensebada e retirou uma fotografia
cheia de quebraduras, que lhe denunciava o tempo, murmurou algo que só a velha
senhora soube o que foi, e duas grossas lágrimas correram por entre os sulcos
escavados em cada face pelo arado da existência.
“Apesar
de não lhe ver, sinto sua presença em minha vida, sinto sua falta todos os
dias.” A frase estampava o muro de periferia á nossa
frente, isso fez os senhores da padaria moscarenta pensar nas ausências
presentes em nossas vidas, que segredos guardavam aqueles velhos baús
ambulantes que um simples cromo amarelado faria desprender tão caudalosos rios
por seus vales faciais?
Um
senhor de casaca preta surrada tirou o chapéu como quem reverencia um féretro
que passa em seu passo lento, outro descansou o queixo sobre a palma da mão
como quem suspira na espera de um amor que não vem, o balconista lançou o pano
de louça sobre o ombro, abriu um largo sorriso e negou a cena; faltou-lhe um
detalhe para saborear a passagem, envelhecer.
Ficaram
ali o tempo eterno das caudalosas lágrimas percorrerem todos os canais, como
quem lava ou como quem queima tal lava incandescente deslizando cinzentamente e
suave pela encosta vesuviana de cada face; a plateia impaciente só faltou
irromper em aplausos, o teatro do absurdo não produziria cena mais marcante.
Um
senhor careca, desses que gostam de contar “causos”, trajando uma bermuda
marrom surrada, uma camisa regata encardida e um chinelo de modelo havaiano que
deixou lembranças, disse em tom forte e rouco que aquilo só poderia ser
armação, os dois estariam planejando algum roubo, pois no seu dizer, essa gente
só serve para isto. O incômodo foi geral.
O
destempero não atingiu a esquina oposta, ali estavam duas parcelas de uma só
somatória, noves fora quase nada, ou quase uma ciranda sem anel. Levantaram-se
do meio da sarjeta poeirenta, deixando ali suas mentiras e verdades, não sem
antes a velha senhora retirar dos seios mais um
mistério, uma carta de baralho, velha como quem a portava, era um rei de
copas, ninguém entendeu; mas abriram uma gargalha como o sol que descortina a
noite, deixaram-na cair como quem perde a coroa, ficou ali, no chão, rastejante
como um plebeu renegado, mas antes de partirem, aquelas duas flores do asfalto,
cada qual em seu roteiro; ela lhe disse claramente: isso é saudade.
Ele
retrucou: e é? Ela respondeu: e não é?